No centro de “A Boneca Despida” (Casa das Letras, 2023), de Paulo M. Morais, está uma mulher: Julieta Silva nasceu em setembro de 1915, na brumosa Ilha do Faial, mais exactamente no número 28 da Rua das Angústias. Não teria tempo de crescer açoriana: com apenas quatro anos mudar-se-ia com os pais para Macau. Por lá viveu ao lado do irmão mais novo, até ao dia em que o seu mundo desabou com estrondo: a morte da mãe, Germana, poria um fim aos seus dias de catraia feliz.
Esmagado pela tragédia, Francisco, pai de Julieta e de Gastão, descartou a responsabilidade de criar os filhos. O rapaz foi despachado para casa de um Sargento amigo, e Julieta ficou a cargo da madrinha, Madame Virgínia, esposa do Superintendente-Geral de Macau e dona de uma posição social de monta.
Após a passagem por um colégio interno em Hong Kong, Julieta ruma a Lisboa, destinada a viver com os avós maternos, Manuel e Palmira. A avó Palmira revelar-se-ia uma torcionária, atormentando a rapariga até à idade adulta, sem razão aparente. O leitor sente amiúde alguma raiva pela forma dócil como Julieta sofre os muitos castigos e provações, sempre sem se virar à terrível avó – uma personagem verdadeiramente detestável.
Julieta acaba por concordar com um casamento desprovido de uma fagulha de paixão, torna-se mãe e avó, sempre em luta contra a corrente do destino. Mesmo sofrendo os maiores golpes imagináveis, nunca se deixa soçobrar e chega a centenária.
Para a geração que nasceu após o 25 de Abril de 1974, a experiência concreta de como seria viver em ditadura limita-se a referências em filmes, memórias dos mais velhos e canções de protesto. Paulo M. Morais consegue, com a história de Julieta, transmitir-nos o ambiente sufocante da sociedade portuguesa sob a mão gelada do regime de Salazar.
Testemunhamos a forma absolutamente misógina e paternalista como eram tratadas as mulheres, bombardeadas de todas as direcções com mensagens de “decência”; o conformismo e puritanismo feroz, omnipresente e ultra vigiado; os detalhes sórdidos da repressão de homossexuais; o provincianismo da filosofia nacionalista, sempre agarrada às neuroses e obsessões do catolicismo com a noção de culpa. A família Silva carrega penosamente estas cicatrizes na sua história, e a atitude de Julieta perante a vida rege-se por aquilo que é esperado dela, e não tanto pelo que a poderia fazer feliz.
O livro, finalista do Prémio LeYa em 2022, é importante no contexto actual — por incrível que pareça, ainda hoje se pode ouvir um líder partidário a advogar «Deus, Pátria, Família e Trabalho, é nisto que este partido acredita!», num flirt descarado com os ideais fascistas do salazarismo. O pior é que esses ideais parecem continuar a apelar a uma fatia considerável da população portuguesa.
“A Boneca Despida” é uma obra difícil de ler, não porque esteja mal escrita (pelo contrário, tem passagens de uma beleza estonteante), mas porque nos toca sobremaneira o desafortunado destino de Julieta, dona de uma força incrível, a quem tocaram as maiores provações desde criança até à hora da sua morte. Quantas mulheres portuguesas terão oferecido, como Julieta, uma vida inteira ao serviço dos outros? Um documento histórico, uma ode à mulher portuguesa do século XX, obrigatório para quem quer compreender a história recente do nosso país.
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