“Tal como os livros de Petrarca, os meus sabem infinitamente mais do que eu e agradeço-lhes por sequer tolerarem a minha presença. Por vezes, sinto que abuso desse privilégio.”
A frase acima transcrita pertence a Alberto Manguel, nascido em Buenos Aires no ano de 1948, um homem que, para grande fortuna dos seus leitores, tem mantido com a literatura e os livros uma relação apaixonada que ultrapassa aquilo a que nos habituámos a chamar de umbilical.
Aos 16 anos, Manguel trabalhava na livraria Pygmalion, em Buenos Aires, quando Jorge Luis Borges lhe pediu que lesse para ele em sua casa, o que fez entre 1964 e 1968. Em 1968 mudou-se para a Europa, tendo vivido em Espanha, França, Itália e Inglaterra, ganhando a vida como leitor e tradutor para várias editoras. Editou cerca de uma dezena de antologias de contos, sobre temas tão diversos como o fantástico ou a literatura erótica. Actualmente é ensaísta, romancista premiado e autor de livros tão incríveis quanto o “Dicionário de Lugares Imaginários” (2013) ou “Uma História da Curiosidade” (2015), sendo também director da biblioteca Nacional da Argentina desde 2016.
“A Biblioteca à Noite” (Tinta da China, 2016) é um exemplo maior da sua paixão pelos livros e de uma veia de bibliófilo. A partir da sua biblioteca pessoal, Manguel traça a sua visão da história das bibliotecas, dos mitos associados aos livros, bem como o fascínio e os enigmas que literatura reserva, num amor que, segundo ele, tem de ser aprendido.
A própria criação da biblioteca de Manguel está envolta num certo misticismo, reportando, segundo o próprio, ao século XIV, quando era um templo de homenagem a um deus ébrio e que, mais tarde, se transformou numa igreja cristã, e que “substituiu o deus ébrio por um deus que transformou o próprio sangue em vinho“.
Para Manguel, a sua Biblioteca existe a dois tempos: “Se a biblioteca de manhã sugere um eco de severa e razoavelmente ilusória ordem do mundo, a biblioteca à noite parece rejubilar na essencial e alegre desordem do mundo“. Uma pequena biblioteca que é a lembrança viva de duas ânsias impossíveis: “o desejo de conte todas as línguas de Babel e o afã de possuir todos os volumes de Alexandria“.
Ao construir a sua biblioteca, Manguel deparou-se com as interrogações que surgem a qualquer bibliotecário doméstico: deverão os livros ser divididos por línguas? Serem agrupados por géneros? Sujeitar os autores à ordem alfabética? Independentemente da abordagem escolhida, Manguel rapidamente terá chegado a uma regra implícita em qualquer biblioteca: “não existem categorias finais“.
Em pouco menos de trezentas páginas, Manguel conduz-nos numa viagem pela história, apresentando-nos a bibliotecas que se tornaram mitos ou lendas, a livros que apenas foram sonhados ou imaginados, à ideia de uma construção utópica da sociedade a partir de uma biblioteca e dos “títulos que, na prática e simbolicamente, nos definem enquanto colectivo“.
Sempre com Borges por perto, procurando na leitura e nas estantes uma espécie de conforto: “Então que procuro eu no fim da história da minha biblioteca? Consolação, talvez. Talvez consolação“. Um dos grandes livros de não ficção editados em 2016.
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