O húngaro Péter Nádas é um dos nomes recorrentemente apontados como candidatos ao Prémio Nobel da Literatura, mas a sua obra, apesar de multipremiada, permanecia inédita em Portugal até ao final do ano passado, quando a editora Cavalo de Ferro começou a dá-la a conhecer ao nosso público, numa tradução a partir da língua original.
O curto romance “A Bíblia” (Cavalo de Ferro, 2023), que assinalou a estreia do autor, em 1967, conta muito mais do que aquilo que nele é explicitamente escrito, deixando-nos entrever a razão pela qual a obra do autor foi censurada pelas autoridades do seu país durante quase uma década, entre 1969 e 1977. A sua descrição de cenas do quotidiano de uma família transmite uma imagem pouco lisonjeira da realidade social e política da Hungria sob o regime comunista, que inclui a escassez de alimentos, o facto de as crianças terem noção de que os poderosos podiam “levar” gente a seu bel-prazer, e a persistência de uma desigualdade social tão gritante que nem chega a originar conflitos, tal é o grau de subjugação dos mais desfavorecidos.
O narrador é o pré-adolescente Gyuri, que vive com os pais e os avós numa villa de “ostensivas dimensões”. Percebemos que os pais, que só regressam a casa à noite, são altos funcionários do partido comunista. Quando não está na escola, Gyuri passa os dias a ler o que encontra, ou a vaguear pelo vasto jardim, mas quando lhe perguntam o que faz, considera que se limita a esperar, “a ver o que acontece”. Todavia, as suas rotinas mudam ligeiramente com a chegada de duas figuras femininas: Éva, a filha dos vizinhos, e Szidike, uma jovem camponesa contratada para ajudar nas lides domésticas.
Descobrimos logo no primeiro capítulo, através do relato chocante da brutalidade exercida sobre um cão, que Gyuri é cruel e vingativo, reagindo às contrariedades e aos seus próprios medos com violência e tentativas de humilhação. A frustração da sua curiosidade sexual, que é repelida por Szidike e alvo de troça por parte de Éva, só contribui para alimentar um ressentimento indefinido contra o mundo. É nesse contexto que um exemplar da Bíblia se transforma numa arma. A mãe de Gyuri comprou-a em 1944, durante a ocupação nazi, para disfarçar o transporte de folhetos subversivos que o pai imprimia com outros camadas, e guardou-a como recordação. Porém, numa casa de supostos ateus, onde se destaca a cruz que Szidike usa ao pescoço, ele cala as emoções que o livro lhe desperta e usa-o para atormentar a rapariga.
O livro reaparecerá no meio de acusações de roubo, proporcionando a Gyuri uma oportunidade de redenção. Ainda assim, estamos perante uma representação da infância onde a cor rosa é substituída por tons sombrios e pulsões difíceis de verbalizar. A narração é fria, talvez para reflectir a falta de calor humano na vida desta criança, mas estabelece uma boa tensão narrativa, que mantém o leitor curioso quando ao desenrolar dos acontecimentos.
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