Costuma dizer-se, em jeito de preservação das melhores memórias ligadas à geografia, que não se deve regressar aos lugares onde já se foi feliz. A verdade é que, pelo menos na literatura, esse regresso é muitas vezes uma tentação, sobretudo se se tiver lançado uma trilogia que arrasou com as listas de vendas e se transformou num livro de culto para muito jovem adulto. Fala-se aqui de Suzanne Collins, a autora da trilogia Os Jogos da Fome que, em 2020, decidiu escrever uma prequela centrada na vida de Coriolanus Snow, e que recebeu o título de “A Balada dos Pássaros e das Serpentes” (Editorial Presença, 2020). Para aqueles que gostaram da série e estão com medo de arriscar, fica a dica: este regresso ao passado vale bem a pena uma leitura.
Passaram-se dez anos desde que o Capitólio derrotou os rebeldes. Os escombros são ainda dominantes, como que a querer mostrar que os dias difíceis não estão esquecidos. Coriolanus vive, com a família, numa quase pobreza não declarada, fazendo-se viver das aparências e do peso que o nome Snow tem ainda nas esferas de poder do Capitólio – “Snow sempre por cima” é o mantra que repetem quando tudo parece ficar complicado. Uma influência que faz com que possa estudar na Academia, que educa os filhos das pessoas ricas, importantes e influentes de uma cidade que é quase um estado.
Nestes décimos jogos, Coriolanus pode viver o seu momento de fama e assegurar o futuro, quando se vê convidado para ser um dos 24 mentores dos 24 participantes dos Jogos. À sua responsabilidade terá Lucy Gray Baird, a rapariga do Distrito Doze, “o distrito mais pequeno, o distrito alvo de todas as piadas, com os seus miúdos enfezados e reumáticos que morriam sempre nos primeiros cinco minutos(…)“.
O requinte que vimos fazer parte dos Jogos na trilogia, com jantares de gala, fatos e vestidos feitos à medida e um tratamento digno de estrelas de cinema, é ainda aqui uma miragem. Os Tributos são transportados em vagões de gado, ficando dias sem alimento e colocados em jaulas para serem observados como animais selvagens. Jogos que têm, como produtora, a chanfrada Dra. Graal e, como director, Highbotton, que odeia Coriolanus e sabe qual a sua verdadeira situação económica.
Ligado ao destino de Coriolanus estará também Sejanus, em tempos habitante do Distrito Dois, um defensor da liberdade e dos direitos humanos que nunca viu com bons olhos a mudança para o Capitólio. Também ele será um dos mentores, apesar de rejeitar todo o conceito que preside aos Jogos da Fome.
Livro com uma forte carga política, “A Balada dos Pássaros e das Serpentes” coloca Coriolanus Snow no momento da linha temporal em que, entre desejos, amores, ambições, sonhos e valores, são feitas as maiores escolhas: aquelas que nos definem enquanto seres humanos. Um mergulho de cabeça nas fundações do Capitólio que acrescenta ainda mais negrume ao tenebroso mundo da trilogia. Simplesmente obrigatório para os fãs de Os Jogos da Fome – para os que ainda não leram a série, este poderá ser o melhor dos começos.
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