Ken Follett regressa a Kingsbridge, cenário da obra “Os Pilares da Terra”, que o celebrizou há algumas décadas e originou várias narrativas derivadas. Com “A Armadura de Luz” (Editorial Presença, 2023) – que pode ser lida independentemente das anteriores –, saltamos para o final do século XVIII, para acompanharmos a Revolução Industrial e parte das Guerras Napoleónicas, através de personagens que compõem um retrato vívido, repleto de acção e diálogos, da sociedade britânica de então.
Começamos em 1792, numa aldeia chamada Badford, onde a arrogância do filho do fidalgo provoca um acidente que fere gravemente um dos seus trabalhadores agrícolas, acabando por matá-lo e desencadeando uma série de acontecimentos que obrigam a viúva, Sal Clitheroe, a partir para Kingsbridge, juntamente com o filho de seis anos, Kit. Estamos num tempo marcado por uma desigualdade social de estarrecer, no qual o equivalente mais próximo de um sistema de Segurança Social era uma Assistência aos Pobres deveras questionável, e sete anos era a idade normal para uma criança começar a trabalhar.
O percurso de Sal e Kit é um dos eixos condutores do livro, que ilustra as consequências positivas e negativas da Revolução Industrial, mas existem outros. Entre conflitos sociais e laborais, ambições, amores e traições, também é interessante a evolução dos metodistas, aqui representados por várias personagens: embora no início ainda pertençam à Igreja Anglicana, que desejam reformar, separaram-se dela e constituem um grupo a ter em consideração.
A própria Kingsbridge sofre transformações. À data da chegada de Sal e Kit, é o centro da indústria têxtil inglesa, tendo mantido as camadas de História que estabelecem a ligação às obras anteriores ao mesmo tempo que se desenvolveu ao ponto de já ter candeeiros a óleo ao longo de algumas ruas. Porém, mais ou menos a meio do livro, perde a aura de prosperidade.
A guerra entre a França e a Grã-Bretanha, na sequência da Revolução Francesa, “causou um declínio no comércio mundial e uma inflação desenfreada”, deixando os britânicos “mais pobres e mais esfomeados”. Entre as elites, há quem tenha ficado tão assustado pela Revolução Francesa, que sinta pânico por tudo o que se lhe afigure uma ameaça de insurreição dos mais humildes, e deseje aniquilar os esforços dos operários para melhorarem as suas condições de trabalho. Para alguns, o movimento – que chega a Kingsbridge – “através do qual os trabalhadores se instruíam, liam livros e assistiam a palestras”, motivados pelo desejo de terem uma palavra a dizer sobre o governo do seu país, é pernicioso: “não é bom que as classes trabalhadoras aprendam a ler e a escrever. […] Os livros e os jornais enchem-lhes a cabeça com ideias que não conseguem compreender bem. Isso faz com que se sintam descontentes com a posição na vida que Deus lhes destinou. Ficam com noções tolas sobre igualdade e democracia”.
A guerra é uma sombra durante grande parte do livro, até saltar para primeiro plano quando Sal e Kit, entre outros, mergulham nela – inclusivamente na Batalha de Waterloo. Terminamos em 1824, com a sensação gratificante de encerramento de uma etapa de diversas vidas transformadas pela indústria e pela guerra – vidas nas quais o autor consegue como poucos envolver os leitores.
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