Na segunda metade do século XVII, a perseguição religiosa marcou a região de Castelo Rodrigo, com dezenas de aldeões a serem levados para os calabouços da Inquisição em Coimbra, sob acusações da prática de judaísmo. Em homenagem às vítimas portuguesas e espanholas desse obscurantismo, em especial às de Castelo Rodrigo e aldeias circundantes, Richard Zimler dedica-lhes “A Floresta do Avesso” (Porto Editora, 2022), a primeira parte de um díptico intitulado A Aldeia das Almas Desaparecidas.
Retomando a saga da família Zarco, que tem vindo a desenvolver desde a sua estreia literária, o autor apresenta-nos aqui uma nova personagem, cujo percurso podemos apreciar independentemente da leitura das obras anteriores: Isaaque Zarco, nascido em 1662 em Castelo Rodrigo, numa família luso-espanhola de cristãos-novos onde se destaca a figura da avó Flor, curandeira e guardiã de um fascinante misticismo judeu de cariz popular.
Isaaque já é um jovem adulto quando começa a narrar-nos a sua própria história, mas fá-la retroceder até aos primeiros dias de vida, marcados por esta mulher especial. A sua infância nas “rudes montanhas de densas e brumosas florestas do Nordeste de Portugal” decorre entre “teias de padrões secretos”, ocultos pelos adultos sob a vida quotidiana, cujo significado só descobre após uma série de acontecimentos brutais abalar a sua existência: é cometido um crime em plena via pública, a melhor amiga e a respectiva família desaparecem, e o cadáver do gentil alfaiate é encontrado por Isaaque em condições chocantes. Igualmente lesiva, embora de uma forma mais insidiosa, é a descortesia crescente de alguns vizinhos, “prova de um cisma profundo e sombrio na aldeia”.
Com cerca de dez anos, o rapaz descobre que a família e vários conhecidos nunca deixaram de ser judeus, sendo habitual manterem as crianças na ignorância das suas origens até terem discernimento suficiente para evitarem indiscrições. Compreende, então, a herança cultural subjacente às tradições domésticas, as mentiras necessárias que os adultos lhe contaram, e a importância de ter sido treinado para esconder os pensamentos.
Integrando factos verídicos numa narrativa sempre fluida, o autor denuncia o mal a que o preconceito conduz algumas pessoas, contrapondo-o à coragem daquelas que reagem com o que têm de melhor em si. Além do tema principal da intolerância religiosa, são abordadas outras formas de discriminação, incluindo a existência dissimulada a que eram obrigados os homossexuais e a condenação das mulheres à iliteracia, ou ao terror de serem mortas por uma das sucessivas gravidezes que não tinham meios para evitar. Tudo isto é apreendido através da história de amadurecimento de um jovem em busca do seu lugar num mundo conturbado, no qual não faltam desavenças familiares, separações forçadas e lealdades inabaláveis. Deixamos Isaaque com 15 anos, a lutar contra uma epidemia terrível para salvar a avó, e sabemos que o futuro não lhe será fácil, mas fechamos o livro com confiança na sua capacidade de superação e cheios de vontade de descobrir o que o próximo volume lhe reserva.
1 Commentário
Mais um brilhante livro, do qual Zimler já nos habituou.
A intolerância e o odio contra o que é desconhecido. O medo de viver plenamente, os valores, a cultura de um povo.
O odio visceral de homem para homem.