Se a noite da detenção de José Sócrates no Aeroporto da Portela, em 2014, foi um momento marcante para a história da justiça em Portugal, a recente decisão instrutória da Operação Marquês não ficou aquém. O despacho do juiz Ivo Rosa no processo mais mediático do país evidenciou, para muitos, uma cultura judicial voltada para a burocracia e morosidade, que alimenta a crescente descredibilização da classe política e da justiça portuguesa.
A corrupção de titulares de cargos públicos é tida como um sério problema nacional, e nunca se falou tanto sobre crimes de colarinho branco como agora. Também “nunca houve uma maioria tão alargada nos poderes públicos sobre a necessidade de combater esse flagelo”, confirma Luís Rosa, autor de “45 Anos de Combate à Corrupção” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021). Neste pequeno livro, Luís Rosa, jornalista do Observador especialista na área da Justiça, faz um resumo dos “principais processos penais da área da criminalidade económico-financeira desde os anos 80”, descrevendo o modo como o Ministério Público tem combatido a corrupção desde a aprovação da Constituição da República Portuguesa em 1976.
Em traços largos, a luta contra a corrupção teve início após a queda da direita autoritária do Estado Novo. Em finais dos anos 70, a euforia revolucionária esmorecera e a democracia portuguesa dava os primeiros passos. A grave crise económica que o país atravessava, e que levou a duas intervenções do FMI (em 1977 e, mais tarde, em 1983), produziu uma explosão das participações criminais a cheques sem cobertura, contrabando, burlas e casos de corrupção, aos quais a justiça portuguesa nem sempre conseguiu dar seguimento. “Além da falta de meios, havia lacunas graves na legislação penal“, refere o autor.
Citada nesta obra, a antiga procuradora-geral adjunta do Ministério Público Maria José Morgado assegura que a luta contra a corrupção “exige uma robustez e maturidade das organizações”. Porém, até ao início dos anos 90 era difícil seguir o rasto do dinheiro em casos de corrupção e não existia, em Portugal, um enquadramento legal para os crimes de fraude fiscal, tráfico de influência ou branqueamento de capitais. Estes e outros ilícitos de natureza económica e financeira só foram estabelecidos como consequência da adesão de Portugal à CEE.
Graças a reformas do ordenamento jurídico ao longo das últimas décadas, o Ministério Público é hoje mais autónomo, especializado e competente. Houve também uma “evolução do know-how da justiça e dos mecanismos de cooperação judiciária internacional”, o que tem permitido aos tribunais dar resposta a centenas de casos “altamente complexos” e mega-processos kafkianos.
Num país condenado à sensação de impunidade dos mais poderosos, habituámo-nos ao conceito de prescrição criminal e às mil e uma peripécias processuais que marcam as manchetes dos jornais nacionais. Neste contexto, a convicção optimista de Luís Rosa quanto ao futuro do combate à corrupção é bastante relevante, mas não menos surpreendente.
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