É um daqueles casos em que, por obra, graça e culpa alheia do mestre Kubrick, o filme atirou com o livro para trás da prateleira. O que é uma pena, uma vez que “2001 Odisseia no Espaço” (Saída de Emergência, 2021), livro de Arthur C. Clarke que deu origem a um dos mais celebrados filmes de ficção científica da história do cinema, é uma obra-prima, que nos faz olhar para o Universo e para a história do mundo como se estivéssemos pendurados de cabeça para baixo no estendal da roupa.
Dividido em seis partes, 2001 começa por nos levar até muito antes do início da civilização humana, onde a aparente hierarquia e distribuição de poderes, redigida instintivamente pelos macacos-homem, se vê abalada com a chegada de um “monólito cristalino”, que dará origem a “um novo animal” que, desde o coração de África, se alastrará aos poucos por todo o planeta. Neste primeiro momento, o mais breve dos três, Arthur C. Clarke dedica um capítulo à Ascensão do Homem, três páginas incríveis que, já em 1968, prenunciavam o anúncio do fim do mundo: “Com o domínio do fogo, abriu os alicerces da tecnologia e deixou as suas origens animais muito para trás. A pedra deu lugar ao bronze e, depois, ao ferro. A caça foi substituída pela agricultura. A tribo cresceu até se tornar aldeia e a aldeia tornou-se cidade. O discurso tornou-se eterno, graças a certas marcas na pedra, no barro e no papiro. Inventou a filosofia e a religião. E povoou o céu, de forma não totalmente errónea, com deuses. Enquanto o seu corpo se tornava cada vez mais desprovido de defesas, as suas capacidades ofensivas ficavam gradualmente mais medonhas. Com pedra, bronze, ferro e aço, usou tudo o que conseguia perfurar e cortar, e não demorou a aprender a abater as suas vítimas à distância. A lança, o arco, a espingarda e, por fim, o míssil teleguiado foram armas de alcance infinito e de poder quase infinito. Sem essas armas, mesmo usando-as com frequência contra si mesmo, o Homem nunca teria conquistado o seu mundo. Investiu nelas o seu coração e a sua alma e serviram-no bem durante eras sucessivas. Até ao momento em que a existência dessas armas colocava em causa a sua sobrevivência”.
O segundo andamento leva-nos até “a primeira vez que uma missão inteira tinha sido preparada para levar um único homem até à lua” – Neil Armstrong chegaria lá em 1969. Esse homem é o Dr. Heyword, que tem como missão encontrar a resposta a esta questão: existirá uma epidemia de algum tipo na lua? Vive-se, por esta altura, uma crise permanente que assola o mundo desde os anos 1970: a chegada tardia da contracepção fez chegar a população mundial a “seis mil milhões, um terço deles no Império Chinês”. Há pouco alimento no planeta e, nos Estados Unidos, existem mesmo dias sem carne, prevendo-se uma fome generalizada dentro de década e meia, o que irá abalar uma esfera onde existem já 38 potências nucleares. Pelo caminho, Heyword passa pela Base Clavius, “um mundo em miniatura” onde reside a primeira geração nascida fora da terra. “Aproximava-se rapidamente o momento em que a Terra, como todas as mães, deveria despedir-se dos filhos”. É nesta base que Heyword irá ouvir falar da A.M.T.-1, “a primeira prova de vida inteligente fora da terra”.
O livro começa a aquecer verdadeiramente na terceira parte, que daí até final será conduzida por David Bowman, que já dificilmente acredita “que alguma vez conhecera outra existência além do pequeno mundo fechado da Discovery”. Sentimentos partilhados por Frank Poole que, meio a brincar, diz lamentar que o psicólogo mais perto esteja a quase 160 milhões de quilómetros. Estamos no início do século XXI, e a Discovery viaja a cento e cinquenta mil quilómetros por hora no espaço, uma viagem sem retorno “até ao seu objectivo derradeiro, a glória anelada de Saturno”. Se a missão correr bem, a tripulação regressará à Terra sete anos depois, 5 dos quais à deriva, esperando pelo resgate da Discovery II, ainda por construir.
É nesta Discovery que vive HAL, um supercomputador cujo funcionamento cognitivo rivaliza com a mente humana, mas que a certa altura começa misteriosamente a falhar. Terá isso a ver com um problema técnico? Ou poderá ser influência do estranho monólito descoberto na lua?
Fazendo uma alegoria do mundo vista do espaço, Arthur C. Clarke leva o leitor a pensar na vida e na morte, na finitude humana e na vastidão do universo, nos dilemas morais da existência humana entre a verdade e a ocultação, mantendo em aberto o desejo humano de constante expansão na busca do seu criador (ou algo parecido): “Um dia iremos conhecer os nossos pares, ou os nossos mestres, entre as estrelas”. Um clássico que, quase sessenta anos depois, continua a ser um dos mais preciosos enigmas literários.
1 Commentário
Um pequeno esclarecimento: o filme “2001 Odisseia do Espaço” nasceu da colaboração bastante estreita entre Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke que levou a que este último escrevesse um texto em prosa tendo como base os seus contos “A Sentinela” e “Encounter in the Dawn”. Daí nasceu um texto literário (o livro) que foi depois transformado em argumento (o filme).
As ideias base são obviamente do Clarke, mas parece-me haver consenso entre os que se dedicam à análise do filme e do livro que tanto um como o outro não teriam existido sem a perseverança de Stanley Kubrick.
À parte este pormenor, gostei bastante da sua análise ao livro.