• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
2001, Odisseia no Espaço, Arthur C. Clarke, Deus Me Livro, Crítica, Saída de Emergência
Mil Folhas 1

“2001 Odisseia no Espaço” | Arthur C. Clarke

Por Pedro Miguel Silva · Em 22/08/2022

É um daqueles casos em que, por obra, graça e culpa alheia do mestre Kubrick, o filme atirou com o livro para trás da prateleira. O que é uma pena, uma vez que “2001 Odisseia no Espaço” (Saída de Emergência, 2021), livro de Arthur C. Clarke que deu origem a um dos mais celebrados filmes de ficção científica da história do cinema, é uma obra-prima, que nos faz olhar para o Universo e para a história do mundo como se estivéssemos pendurados de cabeça para baixo no estendal da roupa.

Dividido em seis partes, 2001 começa por nos levar até muito antes do início da civilização humana, onde a aparente hierarquia e distribuição de poderes, redigida instintivamente pelos macacos-homem, se vê abalada com a chegada de um “monólito cristalino”, que dará origem a “um novo animal” que, desde o coração de África, se alastrará aos poucos por todo o planeta. Neste primeiro momento, o mais breve dos três, Arthur C. Clarke dedica um capítulo à Ascensão do Homem, três páginas incríveis que, já em 1968, prenunciavam o anúncio do fim do mundo: “Com o domínio do fogo, abriu os alicerces da tecnologia e deixou as suas origens animais muito para trás. A pedra deu lugar ao bronze e, depois, ao ferro. A caça foi substituída pela agricultura. A tribo cresceu até se tornar aldeia e a aldeia tornou-se cidade. O discurso tornou-se eterno, graças a certas marcas na pedra, no barro e no papiro. Inventou a filosofia e a religião. E povoou o céu, de forma não totalmente errónea, com deuses. Enquanto o seu corpo se tornava cada vez mais desprovido de defesas, as suas capacidades ofensivas ficavam gradualmente mais medonhas. Com pedra, bronze, ferro e aço, usou tudo o que conseguia perfurar e cortar, e não demorou a aprender a abater as suas vítimas à distância. A lança, o arco, a espingarda e, por fim, o míssil teleguiado foram armas de alcance infinito e de poder quase infinito. Sem essas armas, mesmo usando-as com frequência contra si mesmo, o Homem nunca teria conquistado o seu mundo. Investiu nelas o seu coração e a sua alma e serviram-no bem durante eras sucessivas. Até ao momento em que a existência dessas armas colocava em causa a sua sobrevivência”.

O segundo andamento leva-nos até “a primeira vez que uma missão inteira tinha sido preparada para levar um único homem até à lua” – Neil Armstrong chegaria lá em 1969. Esse homem é o Dr. Heyword, que tem como missão encontrar a resposta a esta questão: existirá uma epidemia de algum tipo na lua? Vive-se, por esta altura, uma crise permanente que assola o mundo desde os anos 1970: a chegada tardia da contracepção fez chegar a população mundial a “seis mil milhões, um terço deles no Império Chinês”. Há pouco alimento no planeta e, nos Estados Unidos, existem mesmo dias sem carne, prevendo-se uma fome generalizada dentro de década e meia, o que irá abalar uma esfera onde existem já 38 potências nucleares. Pelo caminho, Heyword passa pela Base Clavius, “um mundo em miniatura” onde reside a primeira geração nascida fora da terra. “Aproximava-se rapidamente o momento em que a Terra, como todas as mães, deveria despedir-se dos filhos”. É nesta base que Heyword irá ouvir falar da A.M.T.-1, “a primeira prova de vida inteligente fora da terra”.

O livro começa a aquecer verdadeiramente na terceira parte, que daí até final será conduzida por David Bowman, que já dificilmente acredita “que alguma vez conhecera outra existência além do pequeno mundo fechado da Discovery”. Sentimentos partilhados por Frank Poole que, meio a brincar, diz lamentar que o psicólogo mais perto esteja a quase 160 milhões de quilómetros. Estamos no início do século XXI, e a Discovery viaja a cento e cinquenta mil quilómetros por hora no espaço, uma viagem sem retorno “até ao seu objectivo derradeiro, a glória anelada de Saturno”. Se a missão correr bem, a tripulação regressará à Terra sete anos depois, 5 dos quais à deriva, esperando pelo resgate da Discovery II, ainda por construir.

2001, Odisseia no Espaço, Arthur C. Clarke, Deus Me Livro, Crítica, Saída de Emergência É nesta Discovery que vive HAL, um supercomputador cujo funcionamento cognitivo rivaliza com a mente humana, mas que a certa altura começa misteriosamente a falhar. Terá isso a ver com um problema técnico? Ou poderá ser influência do estranho monólito descoberto na lua?

Fazendo uma alegoria do mundo vista do espaço, Arthur C. Clarke leva o leitor a pensar na vida e na morte, na finitude humana e na vastidão do universo, nos dilemas morais da existência humana entre a verdade e a ocultação, mantendo em aberto o desejo humano de constante expansão na busca do seu criador (ou algo parecido): “Um dia iremos conhecer os nossos pares, ou os nossos mestres, entre as estrelas”. Um clássico que, quase sessenta anos depois, continua a ser um dos mais preciosos enigmas literários.

2001Arthur C. ClarkeCríticaDeus Me LivroOdisseia no EspaçoSaída de Emergência

Pedro Miguel Silva

Pode Gostar de

  • Uzumaki, Deus Me Livro, Crítica, Devir, Junji Ito, Mil Folhas

    “Uzumaki” | Junji Ito

  • Deus Me Livro, Crítica, Fábula, Lendas das Estrelas, Mitologia e Sabedoria do Mundo, Mitologia e Sabedoria dos Céus, Claire Cock-Starkey, Mil Folhas

    “Lendas das Estrelas: Mitologia e Sabedoria dos Céus + Mitologia e Sabedoria do Mundo” | Claire Cock-Starkey

  • Marcador, Deus Me Livro, Crítica, Império de Tempestades, Torre da Alvorada, Sarah J. Maas, Mil Folhas

    “Império de Tempestades” + “Torre da Alvorada” | Sarah J. Maas

1 Commentário

  • Luís Mota comentou: 23/08/2022 at 00:01

    Um pequeno esclarecimento: o filme “2001 Odisseia do Espaço” nasceu da colaboração bastante estreita entre Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke que levou a que este último escrevesse um texto em prosa tendo como base os seus contos “A Sentinela” e “Encounter in the Dawn”. Daí nasceu um texto literário (o livro) que foi depois transformado em argumento (o filme).
    As ideias base são obviamente do Clarke, mas parece-me haver consenso entre os que se dedicam à análise do filme e do livro que tanto um como o outro não teriam existido sem a perseverança de Stanley Kubrick.
    À parte este pormenor, gostei bastante da sua análise ao livro.

    Resposta
  • Deixe uma opinião Cancelar

    Siga-nos aqui

    Follow @Deus_Me_Livro
    Follow on Instagram

    Mil Folhas

    • Uzumaki, Deus Me Livro, Crítica, Devir, Junji Ito,

      “Uzumaki” | Junji Ito

      03/06/2025
    • Deus Me Livro, Crítica, Fábula, Lendas das Estrelas, Mitologia e Sabedoria do Mundo, Mitologia e Sabedoria dos Céus, Claire Cock-Starkey,

      “Lendas das Estrelas: Mitologia e Sabedoria dos Céus + Mitologia e Sabedoria do Mundo” | Claire Cock-Starkey

      02/06/2025
    • Marcador, Deus Me Livro, Crítica, Império de Tempestades, Torre da Alvorada, Sarah J. Maas,

      “Império de Tempestades” + “Torre da Alvorada” | Sarah J. Maas

      02/06/2025
    • Boa Noite Punpun 3, Boa Noite Punpun, Inio Asano, Deus Me Livro, Devir, Crítica,

      “Boa Noite, Punpun 3” | Inio Asano

      02/06/2025
    • Eu (Odeio) Adoro Livros, MariaJo Ilustrajo, Deus Me Livro, Fábula, Crítica,

      “Eu (Odeio) Adoro Livros” | MariaJo Ilustrajo

      30/05/2025
    Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

    Archives

    • June 2025
    • May 2025
    • April 2025
    • March 2025
    • February 2025
    • January 2025
    • December 2024
    • November 2024
    • October 2024
    • September 2024
    • August 2024
    • July 2024
    • June 2024
    • May 2024
    • April 2024
    • March 2024
    • February 2024
    • January 2024
    • December 2023
    • November 2023
    • October 2023
    • September 2023
    • August 2023
    • July 2023
    • June 2023
    • May 2023
    • April 2023
    • March 2023
    • February 2023
    • January 2023
    • December 2022
    • November 2022
    • October 2022
    • September 2022
    • August 2022
    • July 2022
    • June 2022
    • May 2022
    • April 2022
    • March 2022
    • February 2022
    • January 2022
    • December 2021
    • November 2021
    • October 2021
    • September 2021
    • August 2021
    • July 2021
    • June 2021
    • May 2021
    • April 2021
    • March 2021
    • February 2021
    • January 2021
    • December 2020
    • November 2020
    • October 2020
    • September 2020
    • August 2020
    • July 2020
    • June 2020
    • May 2020
    • April 2020
    • March 2020
    • February 2020
    • January 2020
    • December 2019
    • November 2019
    • October 2019
    • September 2019
    • August 2019
    • July 2019
    • June 2019
    • May 2019
    • April 2019
    • March 2019
    • February 2019
    • January 2019
    • December 2018
    • November 2018
    • October 2018
    • September 2018
    • August 2018
    • July 2018
    • June 2018
    • May 2018
    • April 2018
    • March 2018
    • February 2018
    • January 2018
    • December 2017
    • November 2017
    • October 2017
    • September 2017
    • August 2017
    • July 2017
    • June 2017
    • May 2017
    • April 2017
    • March 2017
    • February 2017
    • January 2017
    • December 2016
    • November 2016
    • October 2016
    • September 2016
    • August 2016
    • July 2016
    • June 2016
    • May 2016
    • April 2016
    • March 2016
    • February 2016
    • January 2016
    • December 2015
    • November 2015
    • October 2015
    • September 2015
    • August 2015
    • July 2015
    • June 2015
    • May 2015
    • April 2015
    • March 2015
    • February 2015
    • January 2015
    • December 2014
    • November 2014
    • October 2014
    • September 2014
    • August 2014
    • July 2014
    • Contacto