Aviso prévio: a leitura que se segue pode conter linguagem ou cenas susceptíveis de ferir a sensibilidade dos mais sensíveis.
O alerta é de uma pertinência inequívoca, ou não fosse “1793” (Suma de Letras, 2019), do sueco Niklas Natt Och Dag, um murro no estômago e um abanão às mentes mais acomodadas, cépticas ou incautas. Estamos perante um romance policial e, simultaneamente, um romance histórico, intenso a todos os níveis, mas principalmente pela capacidade de o autor conjugar relato factual – quase épico – com uma narrativa enigmática e de suspense. Com um destacado raciocínio lógico, Niklas Dag consegue apresentar, suster e solucionar mistérios e desvendar um crime principal. E fá-lo desenvolvendo o enredo em três grandes planos intimamente ligados: a vítima, o crime e os investigadores.
Em plena monarquia absoluta, entregue à governação Gustaviana – época conhecida pelo poder déspota exercido sem pudor -, “1793” retrata, com arte – como se observássemos uma sucessão de telas expostas num qualquer museu de história da Suécia -, cenas da vida cosmopolita de Estocolmo, a vida à volta dos portos, a movimentação e enleio entre marinheiros em terra, mulheres sem vida própria e uma autoridade que exercia o poder à força, prendendo, castigando e matando como se de um espectáculo se tratasse. A sociedade mais pérfida e insana assistia e aplaudia, como se degolar ou estuprar alguém fosse o mais banal exercício de normalidade e justiça popular.
É neste cenário de degradação e decadência que um ex-militar, Cardell, quase sempre bêbado e brigante, se liga a Winge, o homem que, à contrário da época, acredita que por trás de quase todos os monstros há uma vítima e que, por muito hediondo seja o que fizeram, é preciso conhecer os seus motivos. Já em 1793 havia quem se questionasse sobre o risco de simplesmente punir, sem entender quem comete o crime – como poderemos impedir os crimes de amanhã se não entendermos os que foram cometidos ontem?
Cardell e Winge associam-se para investigar um crime nunca visto, mesmo numa época onde a maldade e a perfidez humana pareciam não ter limites – um cadáver aparece no rio, sem membros, sem olhos, sem língua e sem dentes, com evidências de ter sido progressiva e sequencialmente mutilado, uma amputação após a outra, como se de uma árvore podada se tratasse.
Niklas Natt Och Dag possui talento e minúcia na forma como descreve o ambiente da acção e o mundo emocional das personagens. Todo o livro é uma viagem a uma Estocolmo improvável, degradada, arruinada, pervertida e submetida à barbárie da diferença de classes e ao poder déspota de quem governava. Arrepia e agonia a hábil e detalhada descrição da sociedade de então, com níveis improváveis de maldade e degradação humana, escrava dos instintos de sobrevivência animalesco do ser humano. A rua onde tudo se passa é onde os instintos e os comportamentos mais primários e bizarros se revelam, uma tela cheia de detalhes à qual poucos conseguirão ficar indiferentes. Um romance de estreia que arrebatou a critica e diversos prémios em vários países.
Serão todas “as pessoas monstros mentirosos, uma matilha de lobos sanguinários capazes de se desfazerem uns aos outros em pedaços no seu desejo de domínio”? Independentemente da resposta à pergunta, fica desde logo uma certeza: “o ódio precisa do medo, da mesma forma que o fogo precisa de combustível“.
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