Galardoado com o Prémio Literário Casino da Póvoa / Correntes D`Escritas 2014 pelo livro “Uma mentira mil vezes repetida”, Manuel Jorge Marmelo editou recentemente aquele que será, arrisque-se dizer, o seu melhor romance.
Em “O tempo morto é um bom lugar” (Quetzal Editores, 2014) misturam-se vários géneros literários, desde o policial à autobiografia, rejeitando-se uma ligação umbilical a qualquer um deles. É um livro feito de pontas soltas, dividido em três partes, onde o leitor tem o papel decisivo de deslindar os mistérios que surgem nas suas páginas e que são, felizmente, muitos.
A trama gira à volta de Herculano Vermelho, um jornalista desempregado que um dia acorda ao lado do cadáver de Soraya, «uma inquietação com pernas» e estrela televisiva de um qualquer reality show, de quem aceitou tornar-se ghost writer para escrever uma autobiografia. Herculano não tem memória de nada, mas entrega-se à polícia como se a ida para a prisão fosse um desígnio pessoal a cumprir, vivendo o tempo morto da prisão com uma grande dose de alegria, num lugar onde não há contas para pagar, não existem apresentações periódicas obrigatórias no centro de emprego e não se sentem pressões de qualquer espécie de uma ex-mulher que, ainda assim, sempre mostrou ter paciência de santa. É ele – será mesmo? – que nos conta, na primeira pessoa, o primeiro andamento do livro.
A segunda parte é a surpreendente autobiografia de Soraya, um relato fantasmagórico de um narrador não identificado, que nos conta a breve história de ascensão e queda de uma linda mulher que, por detrás de um belo corpinho, esconde muito mais do que a aparente futilidade. A terceira parte pertence a João António Abelha, um jornalista veterano que, um ano depois da morte de Soraya e com as montras repletas de exemplares de “O Segredo de Soraya”, decide investigar por conta própria quem terá sido o autor da fotografia da capa e, em última instância, quem será, afinal, o autor d próprio livro.
Mestre do engano, artífice da ficção, encantador de leitores, Manuel Jorge Marmelo respondeu às questões levantadas pelo Deus Me Livro.
Partiste da tua condição de desempregado para escrever “O tempo morto é um bom lugar”. Pode dizer-se que os teus livros são, em parte, autobiografias em construção?
É um nome demasiado pomposo e que, para além disso, não corresponde à verdade. Os meus livros não são autobiografias, mesmo quando partem, como neste caso, de circunstâncias biográficas. Quando entram nas minhas ficções, os factos reais passam a ser uma outra coisa. A mediação da literatura confere-lhes um cunho diverso, transforma-os logo numa realidade paralela e já algo descolada do mundo real e de mim.
Desmontando todo o lado ficcional, que essência tua ficou gravada nas personagens de Herculano Vermelho e também de João António Abelha?
Um certo modo de olhar o mundo, de perceber os problemas que nos rodeiam a todos e de reflectir sobre um momento particularmente grave na nossa história comum.
Chegaram mesmo a oferecer-te o trabalho de ghostwriter, como se pode ler por aí?
Não. Apenas me sondaram para essa possibilidade. E também me enviaram um anúncio de emprego nessa área, o qual, de resto, serviu de base para a ficção.
A personagem de Soraya é, para lá de «uma inquietação com pernas», uma verdadeira surpresa. Acreditas que por detrás das (aparentemente) insípidas personagens que habitam as Casas dos Segredos se escondem pessoas verdadeiramente interessantes de conhecer? Ou a Soraya é caso único?
Não sei. Mas acredito que certos mecanismos de celebridade e algumas práticas de exposição pública têm a faculdade de levar as pessoas a parecerem mais boçais e estúpidas do que aquilo que são e do que aquilo que podiam ser.
Como foi construir pela primeira vez – e na primeira pessoa – uma personagem feminina?
Foi muito interessante e também bastante mais fácil do que tinha suposto.
Devolvendo a pergunta formulada em “O tempo morto é um bom lugar”, «o que diria de ti a pessoa que foste com 20 anos»?
Espero que diga que tenho conseguido ser um tipo decente, sério e honesto. Gosto de dormir com a consciência de ter sempre feito o melhor que estava ao meu alcance e de ter vivido a minha vida sem ter prejudicado a de terceiros.
Este é um livro desencantado e reflexivo, onde o poder surge minado, a imprensa em fanicos e o ser humano em modo de sobrevivência que trabalha para pagar impostos e pouco mais. Cabe à Literatura actuar também nestes tempos difíceis?
Cabe a todas as pessoas actuar em todos os tempos, especialmente em tempos como estes que vivemos, em que o conceito de cidadania se esboroa por força de discursos políticos hipócritas e populistas e que nada contribuem para reforçar a consciência de que um Estado é o conjunto de todas as pessoas que o compõem, que só funciona se existir um sentimentos de confiança nas instituições e nos outros indivíduos.
Serão as cadeias os futuros hotéis e lares para sem abrigo, onde se poderá beneficiar «do luxo das refeições quentes e da roupa lavada»?
Espero que não nos transformemos nisso. Mas tenho receio de que estejamos mais perto disso do que possa parecer.
Manuel António Pina é evocado por mais de uma vez no livro. Foi uma referência para ti enquanto escritor?
É uma referência para mim enquanto ser humano, enquanto cidadão. Isto é muito mais importante do que qualquer literatura.
A juventude transformou-se na medida de todas as coisas, como se pode ler a certa altura do romance?
Não é a única, ainda, mas às vezes parece sobrevalorizar-se o que é novo apenas por ser novo, em detrimento daquele que devia ser o critério fundamental: a qualidade.
Numa das últimas frases do livro diz-se que «escrever é só um artifício para chorar diante de todos sem que ninguém veja.» Vês a escrita como uma experiência catártica, quase confessional?
Sim, também. De um modo escondido, oculto, arrevesado e torto, a literatura também serve para reflectir sobre os problemas que afectam o escritor e, por essa via, para ajudar a resolvê-los. E resulta muito mais barato que a psicoterapia.
Este é mais um livro de pontas soltas, onde o final – assim como o meio e parte do princípio – é deixado, em grande parte, à imaginação do leitor. É algo propositado na tua forma de escrever?
Sim, foi algo propositado. Acredito que uma parte de todos os livros é escrita por quem o lê e imagina o rosto dos personagens e as paisagens a partir daquilo que lê. A literatura funciona muito em função deste jogo que se estabelece entre quem escreve e quem lê, esta partilha. O que eu fiz foi levar essa possibilidade um pouco mais longe.
A tampa da sanita é o objecto que mais tende a despoletar o conflito entre sexos, quem sabe a causa maior de separações?
Não creio. O que está no livro é apenas um exemplo. Mas às vezes parece-me que as relações começam a esboroar-se a partir de pequenas coisas muito ridículas que, se calhar, são apenas o sintoma de algo maior. As pessoas estão cada vez menos disponíveis para partilhar alguma coisa com o outro, o que significa também cedência mútua e respeito pelas diferenças. E isto é verdade nas relações sentimentais, mas também, e sobretudo, em muitos outros aspectos, provavelmente até mais importantes para a vida em sociedade.
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