Começou a sua carreira em 1994 como cartoonista, cumprindo aquele que terá sido um dos seus primeiros sonhos de criança. Em 2000 começou a escrever livros para crianças – alguns deles também ilustrados por ele – e, desde então, já foram mais de vinte os títulos que chegaram às livrarias, como é o caso do recente “Não fiz os trabalhos de casa porque…” (Orfeu Negro, 2015), um guia muito útil onde o texto de Davide Cali surge complementado pelas fascinantes e muito divertidas ilustrações de Benjamin Chaud – de que já conhecemos, por exemplo, “A cantiga do Urso” e “As férias do Pequeno Urso”.
A poucos dias da sua vinda a Portugal para o colóquio “É então isto para crianças? – Criações para a Infância e a Juventude”, que terá lugar na Fundação Calouste Gulbenkian a 9 e 10 deste mês, o Deus Me Livro colocou algumas questões a Davide Cali, que confessou ter sido um bom rapaz até se ter transformado num selvagem e escolheu, de entre as inúmeras personagens do universo infanto-juvenil, o Burtoniano Rapaz das Ostras para avatar da sua melancólica alma.
“Não fiz os trabalhos de casa porque…” é um guia bastante útil para evitar a ira de um professor perante um trabalho de casa mal feito ou, simplesmente, inexistente. Tiveste de usar alguma destas artimanhas quando eras pequeno?
Não, nunca. Toda a gente sabe que eu era um “bom rapaz” na escola. Quer dizer, pelo menos até aos 13-14 anos, altura em que me transformei num “selvagem”.
Se tivesses de escolher uma das desculpas do livro para justificar o atraso numa das tuas tarefas qual seria, mesmo que te tomassem por alguém com um parafuso a menos?
Quando era criança sempre sonhei em conseguir tirar uma fotografia ao Bigfoot ou ao Yeti. Esta seria uma boa desculpa.
As tuas histórias têm, quase sempre, mensagens muito ponderosas. Que mensagem esperas que as crianças retirem deste livro, para lá de tentarem não fazer os trabalhos de casa?
Penso que não há uma mensagem neste tipo de livros. É frequente ver adultos a comprar estes livros para eles próprios ou para os oferecerem a amigos. Então a mensagem poderia ser: os adultos nem sempre fazem os seus trabalhos de casa.
Já ilustraste os teus próprios textos e já colaboraste com um número apreciável de ilustradores. Como – ou quando – decides que histórias libertar para serem ilustradas por outras pessoa? E como funciona essa colaboração?
Há algum tempo que parei de ilustrar. De momento, tenho alguém que me está a pedir para ilustrar os seus próximos livros, por isso vamos ver. Eu escrevo e imagino as minhas histórias de um modo muito cinéfilo: quando escrevo consigo sempre ver o “filme” da minha história na minha imaginação. Normalmente decido primeiro um estilo particular para uma história, e então torna-se fácil escolher um ilustrador e convidá-lo a desenhar a história. Noutras ocasiões a colaboração começa depois de uma noite passada a conversar, a beber ou a escrever a alguém de quem gosto. Muitas vezes as minhas histórias são inspiradas por imagens de um ilustrador de que gosto e com o qual gostaria muito de trabalhar. Outras vezes as editoras partilham comigo um livro de um ilustrador, pedindo-me histórias para ele.
“A rainha das rãs não pode molhar os pés” é o teu “Triunfo dos Porcos”, uma visão muito pessoal sobre a forma como o poder pode mudar as pessoas e as suas rotinas?
Creio que sim. É idiota a forma como o poder transforma as coisas e as pessoas em m**da.
“Eu espero” usa um fio vermelho para nos oferecer uma história sobre a jornada da vida – que não acaba bem; “Arturo” conta a história de um fiel e abandonado cão, que espera o regresso do seu amigo e mestre. Achas que as crianças estão preparadas para histórias tristes como estas duas, em especial para “Arturo”? Serão as histórias um meio mais fácil para que os adultos falem às crianças das coisas tristes da vida?
Gosto de mexer com os sentimentos nos meus livros, da mesma forma como gosto de ouvir, num concerto ao vivo, um tema acústico entre dois mais barulhentos. Em relação às crianças, estas revelam-se sempre surpreendentes. São ao mesmo tempo muito conservadoras e abertas em relação a tudo o que seja novo. “Eu espero” fez muitas pessoas chorar. Repara, as pessoas normalmente chegam à minha banca, dão uma vista de olhos ao livro e, quando chegam à página do funeral, fogem a chorar. Mas, passado algum tempo, voltam sempre para comprar o livro. As crianças agem de forma diferente. Lêem o livro até ao fim. Por vezes acabam este e começam logo outro. Outras vezes chamam um irmão ou uma irmã para lhes mostrar o livro porque gostaram dele. Além disso, tenho de dizer que as crianças gostam de histórias terminadas, então sempre que há um fim em aberto elas querem saber: “Irá o amigo do cão voltar a casa um dia?”. Obviamente que elas gostariam que voltasse, mas se eu lhes disser que não sei, elas aceitam o mistério.
Quando é que soubeste que querias viver da escrita de livros?
Na realidade nunca pensei nisso dessa forma. Quando era criança sempre quis ser cartoonista. E fui-o. Os livros chegaram depois. Ainda não sei se quero fazer disto a minha vida. Gosto muito de comics. Gosto de livros e de fazer muitas outras coisas. Talvez um destes dias desista de escrever e vá dar concertos com uma banda rock.
De entre todos os livros que já foram escritos no universo, que personagem de livros infantis é mais parecida contigo e porquê?
Não sei, vivo mais no mundo dos comics do que no dos livros infantis. Talvez o melancólico Rapaz das Ostras do Tim Burton? Sou um tipo muito negro.
Que autores de livros para crianças admiras mais? Quem te dá motivos de inspiração?
Gosto de muitos autores. Um dos meus favoritos tem sempre sido o Tomi Ungerer, porque durante a sua vida fez tudo aquilo que quis: posters de filmes e livros para crianças, desenhos eróticos e quadros. Considero-o um exemplo maior de um artista com a mente aberta. Hoje em dia já não me sinto inspirado por outros autores. Acho que é algo que acontece quando és um principiante. Agora sou simplesmente inspirado pela minha vida, as minhas viagens pelo mundo, as pessoas que conheço.
Estás a trabalhar em algo novo de que nos possas falar?
Estou a trabalhar em vários projectos ao mesmo tempo, como é hábito. Estou a terminar uma novela gráfica para adultos ilustrada por Squaz, que sairá em França, Espanha e Itália. Terminei também um álbum com a Claudia Palmarucci e estou a trabalhar no terceiro livro da colecção dos trabalhos de casa com o Benjamin Chaud, que sairá em 2016. Também estou a trabalhar no terceiro livro da série Bon baisers ratés. Há ainda um novo romance para a minha editora francesa Sarbacane, para a qual estou também a começar três novos livros ilustrados.
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