Segundo round. Ainda mal refeitos da barrigada de pura alegria disparatada do primeiro volume, atacamos “Revolta” (Suma de Letras) o “filho do meio” da trilogia Wayward Pines, por nossa conta e risco, agora que já sabemos o que, afinal, se esconde para lá do muro e das montanhas e o que se passa no paraíso perdido e insidioso daquele vilarejo suspeito.
O que começou por ser uma história baseada em mistérios mais ou menos insondáveis e numa sensação de permanente desconcerto e desconforto tornou-se, no seguimento do final bombástico do primeiro tomo, uma narrativa de ficção científica/sobrevivência da espécie humana no pós-apocalipse/reflexão sobre política e ética. Parece então que a espécie humana está praticamente extinta e que os últimos exemplares estão em Wayward Pines, graças à psicopatia visionária do vilão Bondiano de serviço. Fora da cidade está o planeta que continuou a evoluir sem nós, povoado pelos nossos descendentes, as aberrações ferozes e atávicas que ameaçam os últimos humanos como os conhecemos. E, afinal, não estamos no presente ou no passado recente: estamos no futuro, daqui a uns milénios.
Neste volume já não há luvas de pelica ou aproximações à subtileza. Blake Crouch muda de abordagem com o fôlego que armazenou no primeiro e entra em modo filme de acção pontuado por mais uma mão-cheia de clichés, explicações para a coisa ficar bem assente e revelações explosivas para deixar o leitor a salivar pelo terceiro e último volume. E, claro, termina novamente com o bom do cliffhanger, o final que deixa o anzol como um piercing na bochecha. Mas, apesar da mudança de tom, da troca sem contemplações do mistério pela acção cheia de suspense, do abandono da rota do estranho e desestabilizador – algo que sendo bem feito é dos mecanismos mais eficientes para nos fazer agarrar um livro com um pouco de força demais e a virar as páginas com mais veemência do que o costume –, há coisas que não mudam. A escrita continua subtil como um rinoceronte enfurecido e a construção das personagens tão colorida como um filme a preto e branco. Comparações pouco originais? Bom, se Crouch pode e vende, também se pode por aqui.
As personagens são eficientes, é um facto. O mau é mau, mas revela-se ainda pior. O bom tem os seus defeitos e está a dar para o traumatizadinho, mas é bom até à medula, como se quer. A enfermeira que afinal não é só uma enfermeira sensual e retorcida de um filme série B mas o braço direito do mau é, afinal, uma psicopata consumada quase caricatural. O bom continua com duas mulheres apaixonadas por ele, a oficial e o caso que deixou a oficial muito triste e zangada; mas bolas, o amor dela é tão perfeito que supera tudo. Sim, porque a legítima é uma mulher forte, de sentimentos e pensamentos profundos, mãe coragem e gira que se farta. Como se quer. Mas isto são reflexões de quem não aprecia particularmente personagens com uma falsa densidade; pondo estas exigências de lado, sabemos que cumprem a sua função de forma exemplar, que fazem a narrativa evoluir e a acção acontecer. Tudo para saciar a nossa necessidade de emoções fáceis, exageradas, que não impliquem uma pessoa ter de pensar muito sobre a vida, a sociedade, o amor, o poder, a realidade, no fundo.
Crouch atinge esse objectivo na perfeição, porque nem sempre queremos pensar nem a isso somos obrigados. Às vezes queremos só ler uma trilogia cheia de acção e reviravoltas, planos mirabolantes, maus muito malvados e bons corajosos que mudam tudo, monstros que estão lá fora, monstruosidades que estão cá dentro. Mas se quisermos ler algo mais nisto tudo, podemos, obviamente. As distopias prestam-se a isso. Podemos pensar que é um estudo sociológico, uma reflexão sobre a natureza humana, sobre aquilo que nos move ou o que podemos ganhar ou perder a nível da nossa humanidade quando somos confrontados com a extinção e o horror. Isto, de facto, está presente, mas é um pouco como ver um filme de zombies de baixo orçamento: tudo bem, até pode haver espaço para a reflexão, mas o que nós queremos é a emoção empipocada da mortandade criativa, da acção que não faz reféns. Crouch cumpre, nós agradecemos o gosto bem visível que tem em entreter-nos e passamos ao próximo, porque, sejamos francos, queremos mesmo saber como vai resolver a grande alhada em que resolveu meter o que resta da espécie humana.
2 Commentários
Você sabe onde posso encontrar esse livro em português?
Pode ser ebook também.
Bom dia.
Experimente no site da editora, ou em alternativa numa loja online (Wook, Bertrand, Fnac…).