Gostamos sempre de ver os nossos heróis enaltecidos de forma imaculada, que massajem o nosso ego patriótico com relatos de glórias idas e de um império global que nos colocou no centro do mundo. Sim, agora somos um país tolhido e modesto, mas vejam tudo o que fizemos, tudo o que “descobrimos” e conquistámos, as nossas façanhas incríveis e os nossos heróis quase mitológicos. Na verdade, gostamos da nossa história bem lavadinha, passada pela lixívia para eliminar possíveis nódoas persistentes e sem vilões ou motivos de vergonha; no fundo, gostamos da versão “conto de fadas”.
No seu romance histórico “Vera Cruz” (Clube do Autor, 2015), João Morgado não nos leva em cantigas. Trata-se da biografia romanceada de um dos nossos heróis nacionais, Pedro Álvares Cabral, e prima por ser uma versão mais enfarruscada e realista, em que os podres estão tão explícitos como as virtudes. Baseando-se num trabalho de investigação exaustivo, o autor oferece-nos um romance histórico que combina de forma extremamente competente os factos e a ficção, proporcionando-nos uma leitura que, apesar de informativa – com as suas notas de rodapé e explicações -, não falha no objectivo de entreter e estimular o leitor.
Acompanhando a vida de Pedro Álvares Cabral desde a juventude à maturidade, João Morgado constrói uma personagem em vez de ficar pela biografia seca, pela enumeração de dados, factos e feitos. E é aí que reside o motor deste romance: na criação de uma personagem que não é um herói inacessível e inatacável, mas sim alguém de quem nos sentimos próximos pela sua humanidade. Ao dotar a sua investigação de uma perspectiva ficcional, ficamos a conhecer esta figura de proa – trocadilho intencional – da história portuguesa em todas as suas facetas. Foi de facto um homem heróico, nobre tanto no estatuto social como na sua vertente moral, um brilhante estratega e um guerreiro temível, mas era também um ser humano falível, imperfeito e, por vezes, irascível. Um homem que lutou e arriscou a vida e a sua felicidade por Portugal e pelo seu deus, que se viu enredado em intrigas de corte que lhe causariam mais dano do que todas as tormentas em mares e terras hostis, que acabou por fincar o pé e manter-se firme nos seus princípios, mesmo que isso tenha significado ficar de candeias às avessas com um rei cego pela ambição e pelo ego.
João Morgado não está com meias-medidas ao mostrar o lado feio desta época áurea da história de Portugal, nem se coíbe de retratar a perfídia, a inveja ou a simples ignorância de figuras que fomos ensinados a crer serem perfeitas, como se quer dos heróis. Até a linguagem menos correcta que encontramos nesta narrativa em relação a povos estrangeiros serve um propósito, mesmo que cause desconforto ao leitor do século XXI que já não acha – e muito bem – que seja adequado ou aceitável utilizar certos termos em referência a outros povos. Mas há que recordar que se trata de um romance histórico contado da perspectiva dos portugueses do século XVI e digamos que, na altura, a noção do politicamente correcto não era propriamente uma prioridade. Afinal, era normalíssimo e um desígnio divino e patriótico explorar o mercado de escravos, catequizar povos com crenças diferentes, conquistar territórios alheios por motivos comerciais ou religiosos e dar guerra a quem se cruzasse no caminho de quem tinha a razão (leia-se poder) do seu lado. É a face feia da história que o autor não esconde, mas porque haveria de o fazer? Continua a repetir-se neste século tão mais iluminado, portanto, retire o leitor as conclusões que quiser desta escolha do autor em usar este tipo de discurso.
“Vera Cruz” é, portanto, um romance histórico que, além de elucidar e informar o leitor, oferece uma narrativa fascinante, cheia de aventura e emoção, que nos mostra não só os feitos incríveis dos portugueses que enfrentaram perigos inconcebíveis em terra e no mar, como o lado menos bonito do nosso passado. Uma leitura incontornável para os aficionados da história e recomendável para os leitores que procuram um romance que entretém e informa em igual medida.
2 Commentários
Obrigado pela leitura e referência. Agradeço a atenção.
João Morgado
Gostei deste livro, o realismo de uma época épica portuguesa com defeitos e virtudes, e esta ingratidão que fica tão explícita perante Pedro Álvares Cabral e do coitado Vasco Da Gama.