Ao longo da história da Literatura, muitos foram os escritores que dedicaram obras a animais de estimação, tivessem eles saído da sua imaginação ou, predominantemente, da sua própria vivência.
No que diz respeito ao mais fiel amigo do homem, apenas para recuperar dois exemplos mais recentes, temos o bestseller “Marley & eu”, de John Grogan – que, além das prateleiras de livrarias, conquistou também o grande ecrã – e, mais atrás na linha temporal, “Timbuktu”, este último uma espécie de desvio temático na carreira do americano Paul Auster.
Escrito em 1918 pelo autor do clássico da montanha mágica, “Um homem e o seu cão” (Bertrand Editora, 2015) – “Bauschan and I” na tradução inglesa – descreve a relação de Thomas Mann com Bauschan, um perdigueiro alemão um pouco pequeno demais, com as patas dianteiras longe de serem direitas, «não…conforme aos cânones nem à mais estreita observância.»
Tendo como cenário Bad Tolz, uma cidade alemã plantada na Baviera onde Thomas Mann tinha uma casa à beira rio, escreve-se sobre uma relação feita de avanços e recuos. Ao contrário de “Marley & eu” e “Timbuktu”, livros atravessados por uma emoção extrema, a escrita de Mann está perto da literatura analítica, percorrendo dois anos da vida de Mann desde que Bauschan entrou na sua vida com seis meses de idade, na altura um cão amedrontado e com um apetite aparentemente insaciável.
Para além de revelar a relação de cumplicidade construída com Bauschan, Mann aproveita o cenário natural para se perder em longas descrições, relatando a relação umbilical que Bauschan construiu com o seu habitat nas montanhas, tornando-se um cão de caça e amante de longos passeios e perseguições a alta velocidade.
O lado mais sentimental da narrativa acontece quando Bauschan é internado numa clínica, confessando Mann, nesses poucos dias em que dele esteve separado, ter sido tomado por uma inesperada solidão, fazendo-o olhar para a natureza humana e para sentimentos como o amor ou a dedicação ao outro.
Escrito cerca de uma década antes de Thomas Mann ter recebido o Nobel da Literatura, “Um homem e o seu cão” apresenta-se como uma reflexão de Mann sobre a vida interior de Bauschan – e, ao mesmo tempo, da dele próprio -, bem como sobre a intransponível divisão que separa ambos, parecendo a certa altura deixar no ar um suspiro existencial: no meio de tantas tensões e desilusões, não seríamos por vezes mais felizes vestindo a pele de um animal de estimação bem tratado?
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