Se há conteúdos e títulos que se conjugam na perfeição, “Terra Amarga” (Sextante Editora, 2014), de Joyce Carol Oates, é paradigmático. É mesmo fel que se sente ao ler esta colecção de contos (negros) que versam sobre violência, abuso, violação, culpa e tristeza, ingredientes que, infelizmente, se cruzam em muitos relacionamentos, independentemente da sua dose de “normalidade” ou bizarria.
O ambiente de Nova Jérsia, Nova Iorque ou Minnesota, a perda de um cônjuge e o labirinto emocional que tal representa, assumem papéis decisivos no desenrolar destas histórias. Estas mulheres enlutadas procuram lutar contra monstros, com ou sem rosto, cujas armas são a brutalidade sexual ou física como uma forma de existência. E essa dor mantém-se, fica e fixa-se mesmo durante a ausência.
O livro abre com “Cabeça de abóbora”, um conto que traz a palco uma mulher de nome Hadley, viúva muito recente. Na ressaca, convida um jovem e excêntrico biólogo molecular, um quase-desconhecido, que invade o seu lar, corpo e alma. Sem capacidade de defesa e não querendo revelar uma fragilidade latente, Hadley fica à mercê de alguém que a beija e morde os lábios com uma fúria manipuladora, que tenta convencer a viúva de que é isso que ela deseja. E não será?
Mais à frente, “Sucessões”, o conto que abre o terceiro “capítulo” do livro, revela a forçada convocatória de Adrienne face a um Tribunal de Sucessões. O seu primeiro pensamento é sinónimo de uma sensação redentora e absorvente de uma dor que é interiorizada como “merecida”, pelo simples facto de estar viva. Mas a morte por vezes não é um ponto final. Adrienne é uma viúva confrontada com uma série de questões que colocam em causa a identidade do falecido marido. Seria ele um distinto historiador ou um terrível pervertido? Para desfazer a dúvida, esta mulher, ou o que resta dela, coloca em causa a própria sanidade mental.
Em “A história da facada” relata-se um acontecimento cujo horrível contexto adquire vida própria, independentemente de nunca se chegar a uma conclusão plausível, mesmo para quem foi testemunha. O incidente é demasiado doloroso para que seja relatado à inocente filha de Madeleine, principalmente por não existir uma certeza dos factos, característica muitas vezes presente nas narrativas de Carol Oates. O esfaqueado terá morrido? O assassino foi apanhado? Oates dá o ónus da dedução ao leitor.
Por vezes, sexo e violência dão as mãos e a punição pode ser reflexo de um orgasmo como morte certa. Em “Babysitter”, uma mulher casada encontra-se com um homem cujo nome não importa reter. Para ela é apenas um indivíduo qualquer. Mas este encontro nada tem de simples pois significa a traição, a infidelidade a marido e filhos. Esse acto de procura de prazer, e a luta das consequências que daí advêm, transformam a mulher adúltera na confessora do crime da traição e o seu amante em alguém que testemunha e a castiga, pois ela é uma mulher que merece sofrer, ser punida. Aqui, o sexo é sinónimo de luta e esses conceitos são indistinguíveis, principalmente para uma mulher que se confessa a um estranho, indivíduo esse que age mais como violador que amante.
Essa estranha sensação de partilha encontra também eco em contos como “Bonodo Momma”, que conta a relação entre uma mãe (lindíssima) e a filha enferma que nunca vai conseguir superar as expectativas da progenitora. A história é conduzida com uma sublime forma de narrar e o sentimento de derrota leva o leitor a perguntar quem perderá mais face a um futuro que supõe o vazio.
A disfuncionalidade é outro dos conceitos trabalhados por Oates e tal pode ser traduzido como a própria ideia da morte. Num conto como “Sorte filha da mãe”, a culpa junta-se como uma perfeita aliada para a desgraça, principalmente quando um pai morre no dia de aniversário de uma filha que acha essa “coincidência” como um presságio que interroga o amor entre pai e filha face a uma estranha noção de incondicionalidade.
“Amputada”, conto que encerra o primeiro capítulo de “Terra Amarga”, segue essa filosofia bizarra e traz a palco uma bibliotecária que perdeu as pernas e atrai um homem casado. É mais um no rol de candidatos a rejeitados, homens que devem sentir essa crua sensação de desamparo. No fundo, ela “apenas” ficou amputada de pernas e não do poder de seduzir.
Mas é “Sourland”, o último conto do homónimo livro, o mais impressionante relato da escritora norte-americana. Mais uma vez é uma viúva que ocupa o papel principal, no caso, a única sobrevivente de um terrível acidente de viação. Essa provação leva-a a interiorizar o pensamento do marido que sempre a alertou para ter cuidado com os erros que cometerá “sem rede”, pois a morte dele deixara-a por conta própria. Vítima de si própria, a mulher deixa-se cair num pesadelo que pode encarcerá-la para sempre. Ainda assim, três semanas depois de o marido ter falecido, aceita o convite de um homem enigmático e decide viajar com ele. A necessidade de fugir da vida, de um somatório de passado e presente, leva Sophie para o deserto (literal ou não) com um desconhecido. Essa fuga leva-a para os braços de uma mente perversa que a faz pensar que está a ficar louca. Leitor e personagem são assim levados a cogitar que vivem a mesma história e que apenas o próximo passo pode salvar o que resta.
Com mais ou menos pormenores, maior ou menor sentido de injustiça, todos estes 16 contos, editados em publicações como os prestigiados The New Yorker e The Guardian – ou na (in)suspeita revista Playboy -, colocam o dedo na fragilidade humana face a um contexto que ultrapassa o controlo dos simples acontecimentos. Estes relatos não são aconselhados a pessoas sensíveis, nenhum dos textos de Oates o é.
Quem se atrever a pegar neste livro arrisca-se a percorrer caminhos inquietos, envoltos de armadilhas para a mente, trajectos que transformam e moldam gente que encara o luto como um personagem bizarro e fascinante que se atravessa no caminho e azeda ainda mais a vida. São páginas que servem para a autora exorcizar a perda de alguém que a acompanhou em quase cinco décadas, de uma agonia que rasga as emoções de alguém que perdeu o equilíbrio, de gente em ruínas, de despojos humanos, de pessoas normais.
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