Dificilmente poderia ser mais actual e provocadora a última obra do polémico autor francês Michel Houellebecq. Publicada em França no mesmo dia do ataque terrorista à redacção do jornal satírico Charlie Hebdo, “Submissão” (Alfaguara, 2015) tem como personagem principal um professor de literatura na Sorbonne, François.
Tal como Joris-Karl Huysmans, o escritor francês de finais do século XIX em cuja obra se especializou e que considera ser o seu “único amigo”, François olha com pessimismo para a sociedade que o rodeia, sentindo-se perdido no vazio emocional aparentemente sem sentido em que se tornou a sua vida. E, como Huysmans, irá tentar encontrar na religião a solução para esta apatia existencial.
Ao mesmo tempo que contempla a hipótese de suicídio como consequência lógica da lenta e aparentemente inexorável degradação do «conjunto total de funções que resistem à morte», sentimento agravado pela morte dos seus pais e pela partida para Israel da aluna com quem mantinha uma relação amorosa, François acompanha as eleições presidenciais francesas de 2022. Depois de uma primeira volta ganha pela Frente Nacional de Marine Le Pen com um terço dos votos, seguida pela Fraternidade Muçulmana e pelo Partido Socialista, torna-se claro que alguém terá de conseguir unir a França na defesa dos valores da República. E rapidamente se percebe que esse alguém só poderá ser Mohammed Ben Abbes da Fraternidade Muçulmana que, aproveitando as hesitações e os passos em falso de François Hollande, surge como o líder carismático que a França necessita para derrotar a ameaça da direita radical.
Na segunda volta das presidenciais, o eleitorado moderado francês vê-se assim forçado a optar entre apoiar Ben Abbes como líder de uma coligação alargada de esquerda, com as implicações que isso poderá acarretar para alguns dos ideais fundadores das modernas democracias ocidentais – como a igualdade entre géneros e a laicidade do Estado -, ou arriscar a vitória da xenofobia e da intolerância personificadas pela Frente Nacional de Le Pen.
Político brilhante e habilidoso na arte de gerar consensos, Ben Abbes, que nutre a ambição de conseguir emular o antigo Império Romano e estabelecer uma “Grande Europa” sustentada nos pilares do Islão, vence as eleições de forma clara. Abbes consegue nos primeiros meses concretizar objectivos como a redução do crime em zonas consideradas problemáticas e o pleno emprego, tornado possível pelo facto de ser agora proibido às mulheres exercerem qualquer tipo de actividade profissional. O uso do véu pelas mulheres passa a ser obrigatório e são efectuadas alterações significativas ao nível do Ministério da Educação, uma das prioridades assumidas desde cedo por Abbes: todos os professores que desejem continuar em actividade terão de converter-se ao Islão e os currículos são adaptados de forma a ficarem mais de acordo com os valores muçulmanos. A França abandona o secularismo e adopta uma posição mais tradicionalista, patriarcal, em que a mulher assume um papel de inferioridade, submissa à figura tutelar masculina da sua vida, personificada tanto na figura do pai como na do marido. Ao mesmo tempo, Abbes lança os primeiros passos para a adesão de países como a Tunísia e Marrocos à União Europeia, com o objectivo de formar um bloco alargado e multicontinental capaz de ombrear com os Estados Unidos e a China na luta pela liderança mundial.
Apesar de alguns incidentes isolados entre muçulmanos e os “Identitários”, um grupo que recusa a entrega da França ao inimigo Islão, a vitória do moderado Abbes é tranquila, recebida aparentemente com um sentimento generalizado de alívio e resignação. Da mesma maneira, a conversão de François ao Islão é feita sem grandes sobressaltos. François adere à nova ordem não por motivos religiosos ou ideológicos, mas acima de tudo por razões que poderemos apelidar de egoístas, mais concretamente uma melhoria significativa da sua remuneração enquanto professor, consequência do apoio monetário prestado pelos países do Golfo Pérsico à França de Abbes e a possibilidade de ter várias esposas ao abrigo da poligamia permitida pela lei islâmica.
“Submissão”, cujo nome deriva também do significado da expressão árabe “al-Islam” – submissão voluntária à vontade de Deus -, poderá ser encarado no essencial como uma sátira à decadência moribunda do Ocidente e aos valores a ele associados, um Ocidente que, nas palavras de Houellebecq, «está a acabar diante dos nossos olhos.»
Livro de leitura fácil e cativante, “Submissão” é uma obra provocadora que dificilmente deixará alguém indiferente e onde o autor parece defender a ideia de que a substituição da degradação e indefinição moral em que se encontra o Ocidente pela ordem mais tradicional e rígida dos valores islâmicos poderá ser, afinal, a única solução viável para curar a anemia que entorpece o homem moderno ocidental. Será a entrega ao Islão e à sua pujança demográfica a única forma de reanimar este “cadáver civilizacional” em que, segundo o autor, se tornou a Europa?
Houellebecq, que no passado defendeu um mundo livre do Islão, parece agora acreditar que só regressando à fé, neste caso a muçulmana, pode a sociedade ocidental encontrar um novo rumo. Poderá ser argumentado que o Islão que nos é apresentado não terá correspondência na realidade do mundo muçulmano actual, certamente mais complexo, mas o niilismo e a melancolia que transparecem das palavras de Houellebecq parecem denunciar a convicção do autor de que esta é a oportunidade (única?) de o início de uma nova idade de ouro para a Europa. Como a certa altura se questiona uma das personagens do livro, e se o máximo da felicidade humana residir na submissão mais absoluta?
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