• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
Alfaguara, Submissão, Michel Houellebecq
Crítica, Mil Folhas 0

“Submissão” | Michel Houellebecq

Por Bruno Silva · Em 17/04/2015

Dificilmente poderia ser mais actual e provocadora a última obra do polémico autor francês Michel Houellebecq. Publicada em França no mesmo dia do ataque terrorista à redacção do jornal satírico Charlie Hebdo, “Submissão” (Alfaguara, 2015) tem como personagem principal um professor de literatura na Sorbonne, François.

Tal como Joris-Karl Huysmans, o escritor francês de finais do século XIX em cuja obra se especializou e que considera ser o seu “único amigo”, François olha com pessimismo para a sociedade que o rodeia, sentindo-se perdido no vazio emocional aparentemente sem sentido em que se tornou a sua vida. E, como Huysmans, irá tentar encontrar na religião a solução para esta apatia existencial.

Ao mesmo tempo que contempla a hipótese de suicídio como consequência lógica da lenta e aparentemente inexorável degradação do «conjunto total de funções que resistem à morte», sentimento agravado pela morte dos seus pais e pela partida para Israel da aluna com quem mantinha uma relação amorosa, François acompanha as eleições presidenciais francesas de 2022. Depois de uma primeira volta ganha pela Frente Nacional de Marine Le Pen com um terço dos votos, seguida pela Fraternidade Muçulmana e pelo Partido Socialista, torna-se claro que alguém terá de conseguir unir a França na defesa dos valores da República. E rapidamente se percebe que esse alguém só poderá ser Mohammed Ben Abbes da Fraternidade Muçulmana que, aproveitando as hesitações e os passos em falso de François Hollande, surge como o líder carismático que a França necessita para derrotar a ameaça da direita radical.

Na segunda volta das presidenciais, o eleitorado moderado francês vê-se assim forçado a optar entre apoiar Ben Abbes como líder de uma coligação alargada de esquerda, com as implicações que isso poderá acarretar para alguns dos ideais fundadores das modernas democracias ocidentais – como a igualdade entre géneros e a laicidade do Estado -, ou arriscar a vitória da xenofobia e da intolerância personificadas pela Frente Nacional de Le Pen.

Político brilhante e habilidoso na arte de gerar consensos, Ben Abbes, que nutre a ambição de conseguir emular o antigo Império Romano e estabelecer uma “Grande Europa” sustentada nos pilares do Islão, vence as eleições de forma clara. Abbes consegue nos primeiros meses concretizar objectivos como a redução do crime em zonas consideradas problemáticas e o pleno emprego, tornado possível pelo facto de ser agora proibido às mulheres exercerem qualquer tipo de actividade profissional. O uso do véu pelas mulheres passa a ser obrigatório e são efectuadas alterações significativas ao nível do Ministério da Educação, uma das prioridades assumidas desde cedo por Abbes: todos os professores que desejem continuar em actividade terão de converter-se ao Islão e os currículos são adaptados de forma a ficarem mais de acordo com os valores muçulmanos. A França abandona o secularismo e adopta uma posição mais tradicionalista, patriarcal, em que a mulher assume um papel de inferioridade, submissa à figura tutelar masculina da sua vida, personificada tanto na figura do pai como na do marido. Ao mesmo tempo, Abbes lança os primeiros passos para a adesão de países como a Tunísia e Marrocos à União Europeia, com o objectivo de formar um bloco alargado e multicontinental capaz de ombrear com os Estados Unidos e a China na luta pela liderança mundial.

Apesar de alguns incidentes isolados entre muçulmanos e os “Identitários”, um grupo que recusa a entrega da França ao inimigo Islão, a vitória do moderado Abbes é tranquila, recebida aparentemente com um sentimento generalizado de alívio e resignação. Da mesma maneira, a conversão de François ao Islão é feita sem grandes sobressaltos. François adere à nova ordem não por motivos religiosos ou ideológicos, mas acima de tudo por razões que poderemos apelidar de egoístas, mais concretamente uma melhoria significativa da sua remuneração enquanto professor, consequência do apoio monetário prestado pelos países do Golfo Pérsico à França de Abbes e a possibilidade de ter várias esposas ao abrigo da poligamia permitida pela lei islâmica.

“Submissão”, cujo nome deriva também do significado da expressão árabe “al-Islam” – submissão voluntária à vontade de Deus -, poderá ser encarado no essencial como uma sátira à decadência moribunda do Ocidente e aos valores a ele associados, um Ocidente que, nas palavras de Houellebecq, «está a acabar diante dos nossos olhos.»

Alfaguara, Submissão, Michel HouellebecqLivro de leitura fácil e cativante, “Submissão” é uma obra provocadora que dificilmente deixará alguém indiferente e onde o autor parece defender a ideia de que a substituição da degradação e indefinição moral em que se encontra o Ocidente pela ordem mais tradicional e rígida dos valores islâmicos poderá ser, afinal, a única solução viável para curar a anemia que entorpece o homem moderno ocidental. Será a entrega ao Islão e à sua pujança demográfica a única forma de reanimar este “cadáver civilizacional” em que, segundo o autor, se tornou a Europa?

Houellebecq, que no passado defendeu um mundo livre do Islão, parece agora acreditar que só regressando à fé, neste caso a muçulmana, pode a sociedade ocidental encontrar um novo rumo. Poderá ser argumentado que o Islão que nos é apresentado não terá correspondência na realidade do mundo muçulmano actual, certamente mais complexo, mas o niilismo e a melancolia que transparecem das palavras de Houellebecq parecem denunciar a convicção do autor de que esta é a oportunidade (única?) de o início de uma nova idade de ouro para a Europa. Como a certa altura se questiona uma das personagens do livro, e se o máximo da felicidade humana residir na submissão mais absoluta?

AlfaguaraMichel HouellebecqSubmissão

Bruno Silva

Pode Gostar de

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors, Mil Folhas

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista, Mil Folhas

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular, Mil Folhas

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

Sem Comentários

Deixe uma opinião Cancelar

Siga-nos aqui

Follow @Deus_Me_Livro
Follow on Instagram

Mil Folhas

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors,

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

    08/05/2025
  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista,

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

    08/05/2025
  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular,

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

    07/05/2025
  • Dentro da Tenda, Lucie Lučanská, Deus Me Livro, Crítica, Planeta Tangerina,

    “Dentro da Tenda” | Lucie Lučanská

    07/05/2025
  • Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria, Mariana Enriquez, Deus Me Livro, Crítica, Quetzal,

    “Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria” | Mariana Enriquez

    30/04/2025
Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

Archives

  • May 2025
  • April 2025
  • March 2025
  • February 2025
  • January 2025
  • December 2024
  • November 2024
  • October 2024
  • September 2024
  • August 2024
  • July 2024
  • June 2024
  • May 2024
  • April 2024
  • March 2024
  • February 2024
  • January 2024
  • December 2023
  • November 2023
  • October 2023
  • September 2023
  • August 2023
  • July 2023
  • June 2023
  • May 2023
  • April 2023
  • March 2023
  • February 2023
  • January 2023
  • December 2022
  • November 2022
  • October 2022
  • September 2022
  • August 2022
  • July 2022
  • June 2022
  • May 2022
  • April 2022
  • March 2022
  • February 2022
  • January 2022
  • December 2021
  • November 2021
  • October 2021
  • September 2021
  • August 2021
  • July 2021
  • June 2021
  • May 2021
  • April 2021
  • March 2021
  • February 2021
  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • February 2020
  • January 2020
  • December 2019
  • November 2019
  • October 2019
  • September 2019
  • August 2019
  • July 2019
  • June 2019
  • May 2019
  • April 2019
  • March 2019
  • February 2019
  • January 2019
  • December 2018
  • November 2018
  • October 2018
  • September 2018
  • August 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • May 2018
  • April 2018
  • March 2018
  • February 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • February 2016
  • January 2016
  • December 2015
  • November 2015
  • October 2015
  • September 2015
  • August 2015
  • July 2015
  • June 2015
  • May 2015
  • April 2015
  • March 2015
  • February 2015
  • January 2015
  • December 2014
  • November 2014
  • October 2014
  • September 2014
  • August 2014
  • July 2014
  • Contacto