Normalmente, aquando de uma discussão entre os amantes do papel e os adoradores dos e-books, um dos argumentos esgrimidos pelos primeiros tem a ver com a magia do cheiro das páginas, algo que, no caso dos últimos, só seria possível criar com o recurso a corantes e conservantes dentro de uma aplicação para lá do sci-fi. Há, porém, livros que despertam em ambos os lados da barricada a mesma sensação de tele-transporte, conseguindo levar o leitor a experienciar algo que, em teoria, apenas seria possível pedindo emprestado ao Michael J. Fox o DeLorean que está a ganhar pó na garagem. “Sonhos de Bunker Hill”, da autoria de John Fante, é um desses livros com a capacidade de escavar um túnel no tempo, fazendo-nos percorrer as ruas de Los Angeles sentindo de forma quase presencial os anos (19)30 norte-americanos.
“Sonhos de Bunker Hill” (Alfaguara, 2014) é o quarto e último romance da Saga de Arturo Bandini, um dos heróis – ou anti-heróis – com maior carga autobiográfica da história da Literatura, trazido para a vida por John Fante, um homem que, segundo Charles Bukowoski, não tinha medo das emoções. O livro foi ditado à mulher depois de Fante ter cegado devido à diabetes, tendo sido publicado em 1982, um ano antes da morte do autor.
Estamos na cidade de Los Angeles, ano de 1934. Arturo Bandini, o aspirante a escritor e ao estrelato, tem agora 21 anos, os bolsos vazios e alma carregada de sonhos, misturados com uma ingenuidade que, de tão grande, dá pena. Baldini vai ganhando a vida trabalhando como empregado de mesa no bairro de Bunker Hill, apinhado de imigrantes e bandidos, até ao dia em que, depois de ver um conto seu publicado, é convidado a trabalhar como revisor literário, aproveitando para mudar o guarda-roupa de um cabide ao outro.
Apesar da curta-duração do trabalho a sorte parece estar com Bandini, que pouco tempo depois do despedimento encontra trabalho como guionista de reserva, enchendo a conta bancária enquanto vai vivendo dias de ócio, tentando encontrar as respostas às muitas inquietações que o perseguem, bem como a voz interior que o fez abandonar o lugar inóspito da infância e da adolescência para mergulhar na cidade de LA.
Arturo Bandini tem algumas semelhanças genéticas com Philip Marlowe, pela forma como se move entre as mulheres e o modo em como observa o mundo – afastando-se dele ao invés de o abraçar -, mas os dois serão, no máximo, primos afastados. Baldini é um homem que tende a enveredar por paixões fáceis e instantâneas, tentado a libertar o pecado em confissão – apesar de não professar qualquer religião -, a reprimir os estudos, a ser um vagabundo em cidade própria e a usar uma linguagem com poucos sinais de decoro.
Apesar de este ser o quarto e último livro da saga, o leitor que começar por aqui terá uma história de certa forma autónoma de um anti-herói melancólico por excelência, que faz de “Sonhos de Bunker Hill” um pequeno romance de corpo inteiro. E que, muito provavelmente, fará com que o leitor menos precavido se atire rapidamente aos outros três volumes.
1 Commentário
Fui um leitor menos precavido! Encontrei ainda hoje o livro por entre as coisas da estante de meu colega de quarto e o devorei. Preciso dos outros três.