Convenhamos: não é por acaso que os críticos não gozam, regra geral, de boa fama. O ofício, mesmo que amador, é ingrato e implica inevitavelmente o dom da pretensão. Vem isto a propósito do último opus de Helder Macedo – poeta, romancista, ensaísta, crítico e investigador literário -, um dos vultos vivos da literatura de língua portuguesa.
“Romance” (Editorial Presença, 2015) é um longo poema erudito e bucólico, de vocação romanesca, inspirado no poema “Ao longo de uma ribeira”, de Bernardim Ribeiro, o célebre trovador renascentista que um dia começou uma novela com estas imortais palavras: Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. (1)
Helder Macedo, ele próprio um estudioso da obra de Bernardim Ribeiro (2), assume frontal e inequivocamente essa influência, que salta aos olhos da sensibilidade do leitor: o romantismo pessimista e o saudosismo místico, características do notável autor de corte, fazem de “Romance” uma obra soturna e etérea, é certo, mas também – e estranhamente – um objecto corpóreo de emoções que, sendo emanescentes da ficção, colidem com o granito do real.
Para além da imediata presença de Bernardim Ribeiro, o poema situa-se algures entre os meridianos de Púchkin (3) e os paralelos de Lobo Antunes, e tem até certas coordenadas que nos levam, aqui e ali, à moderna odisseia de Gonçalo M. Tavares (4). Não que se trate de um poema épico, porque falamos de uma novela de amor em verso. E de um amor que não é grego. De um amor que é sonhado e que é cúmplice, que é cumprido e que é recusado, que tem e não tem um destino, que é nada, que é tudo, que é fado. Que é português.
A narrativa, elíptica e torturada, sacudida pelo ritmo despontuado e corrido dos versos breves e da arritmia das estrofes (às vezes é muito difícil parar para respirar), eleva-se numa espécie fantasmática de cantiga de amigo a duas vozes, que desafia as leis da gravidade e a normal configuração do espaço-tempo. Namorado e namorada enleiam-se num amor que já está condenado na sua génese, que já é morte no nascimento.
Porque no presente o amor é um derradeiro afastamento da vida, a história que Helder Macedo tem para contar é a da saudade de um futuro em que o romance pleno, imortal, possa eventualmente fazer sentido. E é nessa hipótese, talvez remota; e é nessa derrota, talvez vitória, que está a razão de ser do poema.
encontrada
a fronteira inalcançada
da materna morte
primeva
eucarística
redentora
que já não procurava
em si
se cada um tem o passado
do futuro que merece
não sendo o merecimento
possível
apenas final
sentar-se
à porta duma pastelaria
comendo torradas
de pão de forma
com manteiga a mais
engordurando o futuro
dum passado que não há
por nunca mais ir ter havido
manhã
nas brechas
abertas
da noite
As torradas, como os chocolates que a pequena heroína de Álvaro de Campos devora com aflição ávida (5), são afinal o que sobra do romance que é a vida. Tudo o mais é a ficção ou a morte. A morte que condena os amantes. A ficção que os salva.
Porém – e voltando ao princípio -, há que ressalvar um detalhe do tamanho do mundo: “Romance” é um poema complexo, cifrado pela erudição e pela ambição lírica do seu autor. Podemos lê-lo e senti-lo e cantá-lo, até, de muitas e diversas maneiras. É um poema para ler dez vezes e tirar dele dez humildes apontamentos críticos. É sobretudo um exercício complexo de emoções que se copulam para gerar poesia. Ou melhor: para gerar o mistério da poesia. E uma coisa é certa: não é de certeza este multidimensionalmente pequenino texto que vai agora decifrar esse supremo enigma.
(1) Bernardim Ribeiro – Saudades (ou Menina e Moça)
(2) Helder Macedo – Do Significado Oculto da Menina e Moça
(3) Aleksandr Púchkin – Eugene Oneguine – O Romance da Vida Russa em
Verso
(4) Gonçalo M. Tavares – Uma Viagem à Índia
(5) Álvaro de Campos – Tabacaria
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