Tudo começa no instante em que um estudante decide aprender uma nova língua – a língua chinesa –, por “achar que a própria língua não dá conta do que tem para dizer”. Como resultado de uma vida sem uma ponta de felicidade, desempregado e divorciado há seis anos, resta-lhe unicamente uma sensação de insatisfação que o leva a estudar a língua chinesa e a querer embarcar para a China. É no momento em que está na fila para fazer o check-in que encontra a sua professora de chinês e, após algum tempo, acaba por ser detido com a sua professora. Cada um é levado para uma sala diferente, cada um é questionado por um polícia. Sob o olhar do estudante de chinês, Bernardo Carvalho convida em “Reprodução” (Quetzal, 2015) o leitor a reflectir, numa época em que o acesso à informação está à mão de todas as pessoas (apesar do momento de reflexão ser questionado).
A partir do momento em que o estudante de chinês é detido e submetido a um interrogatório, ouve-se unicamente o monólogo fervoroso do jovem detido. Um monólogo meticulosamente pensado e estruturado pelo autor, onde não há lugar ou tempo para o leitor ter acesso ao discurso da personagem que prendeu o estudante de chinês. “Porquê? Ora, por quê! Porque fui estudar chinês. Não fui estudar inglês ou espanhol. Chinês é a língua do demónio”, começa por se justificar o estudante em relação à escolha da sua viagem, tentando afastar as suspeitas da polícia sobre um relacionamento com a sua professora de chinês. Uma suspeita que o leitor só verá confirmada no último capítulo do livro, após uma viagem pela insatisfação do protagonista: pela sua vida pessoal, o sistema, os estereótipos, o Brasil, a homossexualidade, e tantos assuntos diariamente abordados de uma forma superficial pelos meios de comunicação – jornais, Internet, pessoas –, mas nunca reflectidos.
Por não existir, em muitos casos, uma verdadeira conversa entre duas pessoas – o momento de partilha em qualquer lugar –, só há acesso à reacção do polícia pelas referências do estudante, em especial nos momentos em que é interrompido pelo discurso calão que discorre ao longo do monólogo. Foi nas mudanças provocadas pela Internet – numa entrevista feita por Isabel Lucas no Público – que o escritor se inspirou, por existir, cada vez mais, “um leitor mais burro e mais violento”, e este romance tenta ser um protesto contra a ideia de facilidade que a Internet provoca no ser humano.
Entre o medo, a exaustão e o nervosismo, o protagonista vai dividindo o seu discurso sem dar tempo ao leitor de respirar. E, se inicialmente não há dúvidas de que está detido sem nenhuma razão plausível, a dúvida começa a alastrar por toda a revolta sentida no monólogo. Toda a inimizade começa a dar vontade ao delegado de “esmurrar o estudante de chinês quando o telefone interrompe a passagem da vontade ao ato”. Trata-se de uma Reprodução não só construída por reflexão mas, igualmente, pela emoção, o que nem sempre é um sinal de inteligência para o protagonista.
Não há dúvida de que Bernardo Carvalho é um dos escritores brasileiros contemporâneos mais reconhecidos. Correspondente em Paris e Nova Iorque da Folha de São Paulo, acabou por aproveitar uma paragem na carreira para se dedicar à ficção. Uma dedicação bem-sucedida, a contar com os dez romances publicados e o número de prémios alcançados. Entre eles, o Prémio Portugal Telecom de Literatura Brasileira com “Nove Noites” (2002) e o segundo Prémio Jabuti com este “Reprodução”. Restará aos leitores perceberem qual será a língua do futuro pelas mãos do escritor.
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