Oh as casas as casas as casas
Ruy Belo
“Regressar a Casa com Manuel António Pina” (Abysmo, 2015), de Inês Fonseca Santos, é um livro inesperado, composto por 3 partes: uma conversa, um ensaio e um presente – um DVD com uma curta-metragem documental sobre o tema da casa. O livro é assim circular, volta por fim à conversa inicial, parcialmente e filmada, e aí encontramos o poeta objecto desta homenagem, no interior de sua casa, tão calmo, tão acessível, tão próximo de deixar tudo, conversando, arrumando livros, fumando charuto. Vemos móveis, objectos, janelas, lá fora o Porto.
O livro nasceu naturalmente do gosto de Inês Fonseca Santos (lembramo-nos da sua bonita presença no saudoso programa Câmara Clara diário) pela poesia de Manuel António Pina, que a levou a uma tese de mestrado sobre a mesma, e da proximidade com o poeta que daí decorreu. Ambos têm em comum uma formação de base em Direito, o jornalismo e a poesia. O poeta nortenho escreveu literatura infanto-juvenil, crónica jornalística e poesia. Recebeu o Prémio Camões e mais 10 prémios ao longo da sua carreira. É como poeta que aqui é tratado e bem.
Manuel António Pina fala principalmente da casa, da simbologia da casa, pouco de viagens e muito de regressos, de escadas interiores de acesso, acesso a coisas reais e simbólicas, da infância, da mãe, da morte. Ideias fortes presentes na sua obra. A conversa é bem e pouco conduzida, Inês tem medo de interromper, de cortar demasiado o fio da conversa por imaginar o que pode perder com isso. Para o poeta, a casa é protectora e maternal, mas também ameaçadora, consequência da protecção poder tornar-se prisão, tirando-nos o mundo, só porta fechada. Dentro de casa muitos livros, e esses livros são casas também, que nos acolhem, como a Bíblia é uma casa, muitas casas, muitos mundos numa biblioteca dentro duma casa. Também o corpo é casa com a sua roupa interior colada à intimidade, o corpo que nunca mente, ao contrário da palavra. A mentira é mais interessante do que a verdade, como diz Umberto Eco. A palavra que serve mais para separar e afastar do que para aproximar, como faz o silêncio. Toda a existência é uma perda, diz o poeta. A falta e a fala. O que falta fala. Talvez seja a perda o que leva as pessoas a escrever poesia.
As cidades onde vivemos são também a nossa casa. «Há cidades que nos ficam largas, desconfortáveis; outras muito apertadas. O Porto é uma cidade exactamente à minha medida». Conta uma pequena impressionante história. Um sem-abrigo, ao vender-lhe a revista Cais, trata-o pelo nome e pede-lhe um livro seu, O Caminho da Casa, o único que não tem. Um homem sem casa. Acaba por descobrir que o homem era antes livreiro.
A parte central do livro é o ensaio da autora sobre a obra poética de Manuel António Pina, com todo o interesse para iniciados mas menos atraente para o leitor comum. A linguagem é académica e ainda algo colada ao que é a linguagem de uma tese.
E já que falamos de poetas, a editora Abysmo traz sempre como explicação, honra lhe seja feita, uma citação de Teixeira de Pascoaes, telúrico e transcendente o extraordinário poeta do Marão, autor de biografias monumentais. «Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mistério… Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformá-lo numa superfície banal.» Tal como Sophia de Mello Breyner lamentava a palavra dança ter passado a ser escrita com uma letra tão sentada como o ç, e não o s dançante. Fazem falta os poetas!
Próxima apresentação
22 Maio | 22h00 | Casa da Cultura, Setúbal
MUITO CÁ DE CASA
Inês Fonseca Santos conversa sobre Manuel António Pina. Vai haver cinema e tudo. E conversa, muita e saborosa conversa. Tudo a preceito.
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