«Felizes os que escrevem um diário cheio de personagens ilustres, acontecimentos importantes e encontros daqueles onde as ideias faíscam e se ouvem frases que se tornam históricas.
O anotar dos dias de uma vida como a que levo, feita de calma e mediania, sem drama nem contrariedades de maior, talvez sirva apenas para para os que nela se reconhecem não desanimem nem se sintam sós.» Rentes de Carvalho
Rentes de Carvalho começou a escrever este diário, editado em Portugal em Maio de 2015, no dia 15 de Maio de 1999, dia em que fazia 69 anos, e terminou no dia 15 de Maio de 2000, dia em que completou 70 anos. Escreveu durante um ano com entradas diárias sem falha, numa total regularidade. Assinala assim, entre dois maduros Maios, o ano da passagem do século, do milénio e das 7 décadas da sua vida, este escritor português com vasta obra publicada, aplaudida e reconhecida fora de Portugal, estranhamente desconhecido dos portugueses. Este desconhecimento torna oportuna a publicação de “Pó, Cinza e Recordações” (Quetzal, 2015) seu diário que nos responde em parte à pergunta: quem é Rentes de Carvalho?
“Um dos últimos aventureiros” (como lhe chama Francisco José Viegas, seu editor), nascido de pais transmontanos, em Vila Nova de Gaia em 1930, Rentes abandonou o país muito jovem. Viveu no Rio de Janeiro, São Paulo, Nova Iorque e Paris. Em 1956 radica-se em Amesterdão, onde vive até hoje e onde escreveu e publicou vasta obra literária, com grande sucesso junto dos críticos e dos leitores, e com sucessivas reedições.
A escrita confessional, diários, cartas ou memórias, pode ser tudo, do mais aborrecido ao mais fascinante da vida humana, sempre matéria de curiosidade psicológica ou sociológica. É o tipo de escrita que convoca o voyeur que há no leitor, desejoso de descobrir quem é na intimidade o escritor, o artista, o actor, a figura pública. A escrita de diários presta-se também a muitas vulgaridades e lixo, já foi a escrita típica da imaturidade juvenil, principalmente feminina, antes do fenómeno facebook, daí o estatuto de literatura menor. Sabemos no entanto que grande número de escritores e figuras de primeira linha mantiveram diários durante quase toda a vida, bem como extensa e intensa correspondência.
Porque escrevemos diários? São sinceros? Segundo William Boyd, “os grandes diários literários foram escritos sem nenhuma expectativa de ser lidos”; a escrita invisível. Outros, como Anaïs Nin refere, já têm o público no horizonte e a ele se dirigem veladamente. A lista de pessoas que sabemos terem mantido diários é enorme. A escrita diária ajuda a organizar as ideias e a conhecer-se a si mesmo, é um instrumento de trabalho e de terapia em épocas difíceis (e todas o podem ser!). Viajantes, exploradores e conquistadores escreveram diários importantes para a História.
Walter Benjamin diz que “os que escrevem diários são levados pela síndrome de flâneur, do transeunte. O homem moderno é um ser deslocado e que está partido em mil bocados. Só a literatura parece dar-lhe a possibilidade de recompor a vida.” Esta consideração de Benjamin assenta na perfeição na obra de que estamos a tratar.
A vida diária a maior parte das vezes não tem interesse nenhum, como o autor de “Pó, Cinzas e Recordações” reconhece; no entanto, um bom escritor pode fazer de qualquer visita a um lar de idosos páginas brilhantes. E, nas páginas deste diário, onde passam tantas personagens, uma das mais extraordinárias e desarmantes é a velha senhora sua mãe, que Rentes visita no Lar, penosamente, sempre que está em Portugal.
José Rentes de Carvalho fala sobre o seu diário: «Há diários importantes e os que são apenas interessantes. Há-os íntimos, alguns dolorosamente francos, outros mascarados. Os que são escritos para ferir e os que são escritos para recordar. Este, suponho eu, cabe mal nas categorias acima, pois menos que uma anotação de factos e pensamentos, o vejo sobretudo como um desejo de conversa.» O desejo de conversa tem a vontade de vencer a solidão intrínseca a todos e mais ao que vive desde sempre longe do país, por melhor que seja o acolhimento. E fala disso mesmo. «Aonde pertencerei? De verdade e por inteiro a parte nenhuma. A terra onde nasci tornou-se-me estranha como um teatro, quando estou nela tenho a ideia de que represento um papel. A outra, onde vivo há mais de meio século, dá-me por vezes a ideia de um navio que se afasta e me deixou no cais. Procurar outro poiso? Nem a idade mo permite nem as amarras o deixariam. Porque é isso: não pertenço, mas é muito forte o que me prende.»
Qualquer coisa neste diário lembra a escrita limpa e sincera de Irene Lisboa em Solidão, apesar das grandes diferenças da época, de género e do mundo mais fechado desta.
Existe ao longo deste ano de diário a clivagem entre a Holanda e Portugal. Alternadamente o autor está em Amesterdão ou em Mogadouro, Carviçais. Aqui o mundo exterior, com seus estranhos e fortes personagens, próprios das terras do interior, têm uma força que os de lá não têm. No centro da civilização outras abstrações, outros personagens e observações ganham expressão. O que de mais marcante nos fica passa-se em Trás-os-Montes, entre a tristeza do abandono, do desaparecimento progressivo dos habitantes do interior, de certa ferocidade e extravagância dos retratos de vizinhos e conhecidos, da casa em ruínas, do desespero da papelada e da burocracia, da mãe que sempre foi difícil. Tudo nos diverte e nos torna cépticos na crueza deste olhar que olha de frente, compreensivo e rigoroso. Vivendo longe consegue ver Portugal com a distância que melhor permite a clareza, como a distância da pantalha de cinema. «Aquela melancolia à portuguesa, cheia de insatisfações e insondáveis dores, paradoxos, desejos contraditórios de fugir e ao mesmo tempo ficar, o todo envolto em colossal apatia»…
Fica-nos a ideia de um homem que cumpre e aceita, com a paciência que consegue, os obstáculos que a vida lhe põe pela frente, que não faz figura, que não cria um personagem de si próprio, que não tem ilusões, que sabe que a vida é quase todos os dias rotina e trabalho, sem glória nem charme, e com esta autenticidade pensa pela sua cabeça sobre tudo com que se depara, do mais pequeno do quotidiano até aos monstros sagrados das letras e do pensamento. É com alguma surpresa que o vemos desfazer grandes venerados da literatura portuguesa como Cardoso Pires e até Aquilino Ribeiro. Sobre Cardoso Pires, a título de exemplo: «A franqueza manda dizer que nunca apreciei o seu estilo nem os temas de que tratava», explicando o que lhe desagrada na obra e no homem. É sempre saudável depararmo-nos com opiniões dissonantes que vêm estragar a unanimidade. Faz algumas listas de intocáveis que amou mas que não resistiram à passagem do tempo, e isso mostra uma cabeça com a frescura de pensar sozinha, que é o tipo de solidão que faz companhia.
Se Rentes de Carvalho queria conversar conseguiu. Conversa connosco e convida-nos a conhecer e a medir por nós próprios o mundo e quem por cá anda ou andou.
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