O Portugal do princípio do Século XXI é por certo território interessante para somar matéria de facto à teorização das lideranças ocidentais. Entre 2000 e 2015 houve uma assombrosa metamorfose de protagonismos na economia do país e os donos disto tudo já não são quem eram. O Estado não tem hoje o poder corporativo que tinha, na medida em que as contingências da dívida pública obrigaram a uma política de alienação de boa parte do seu património empresarial; o segundo maior banco do país faliu e as instituições credoras internacionais assumiram um papel ainda mais determinante do que já era, na condução do cenário macro-económico do país.
É certo que Portugal sempre foi deficitário e que, por diversas vezes na história, precisou de recorrer com urgência a várias tipologias de resgate financeiro. É verdade que o país sempre teve problemas que decorrem da impreparação e do atavismo crónico das suas elites burguesas. Mas talvez nunca, como agora, essa infeliz condição deficitária tenha impactado de forma tão directa a composição do dirigismo económico.
“Os Novos Donos Disto Tudo” (Matéria-Prima, 2015), de Filipe Alves com António Sarmento, é precisamente o relato dessa metamorfose, identificando os protagonistas, as quedas e as ascensões dos senhores do poder económico em Portugal nos últimos 15 anos.
O livro, que é resultado de profundos conhecimentos de campo e de um rigoroso trabalho de investigação, está recheado de detalhes saborosos, como a conversa que Filipe Alves manteve com Ricardo Salgado por ocasião de um encontro com jornalistas num luxuoso spa no sul de França, no ano de 2008, ou o relato de como a disputa sobre a Semapa levou à queda do GES (não deixa de ser preocupante equacionar que foi Pedro Queiroz Pereira a denunciar a situação desesperada do Grupo Espírito Santo, dada a total cegueira e inacção do Banco de Portugal).
Ainda sobre o BES, é curioso saber que era de tal forma tentacular a influência do banco, que até a icónica e revolucionária Festa do Avante contava com apoio fiduciário desta instituição (!). E que, muitas das balas que voaram durante a guerra que eclodiu pela liderança do BCP, vieram do arsenal conspirativo de Ricardo Salgado.
Seja como for, e numa perspectiva mais geral, há aqui substância a rodos para confirmar as suspeitas: enquanto alguns grupos económicos portugueses resistiram ao tsunami da crise iniciada em 2007, foram os chineses e os angolanos que se afirmaram, desde aí, na economia nacional. E, talvez pela crescente internacionalização do capital das grandes empresas nacionais, “os banqueiros passaram a bancários”, na medida em que já não são detentores do capital das instituições que dirigem.
A China vê Portugal como um país atractivo para investir porque, aparentemente, o país é uma porta de entrada para o Brasil e os PALOPs e porque, uma vez aberto o Canal do Panamá à navegação dos monstros cargueiros transcontinentais, Sines poderá ser um porto importante no contexto do trânsito global de mercadorias. O facto de Portugal ser o parceiro comercial europeu mais antigo da China pode remotamente ser valorizado pelos chineses, como os autores sugerem, mas considerando a natureza humana e as ambições do Império do Meio, os argumentos anteriores são bem mais pertinazes.
O investimento chinês, para além de vir cumprir prementes necessidades de tesouraria do Terreiro do Paço, traz uma outra contrapartida inesperada, no sentido da captação de capitais estrangeiros: os americanos, preocupados com as ambições geo-estratégicas do seu rival, têm também, nos últimos anos, procurado um lugar de significado na economia portuguesa.
No que diz respeito ao investimento Angolano, que entre 2002 e 2012 multiplicou 35 vezes (!), é facilmente perceptível que se trata de procurar colocar dinheiro equívoco em instituições inequívocas como a PT, a EDP ou o Sport Lisboa e Benfica. Instituições que dão garantias, senão de lucro, pelo menos de credibilidade.
Grande parte do livro, e talvez a menos interessante – embora de utilidade óbvia -, faz a síntese biográfica dos novos Donos Disto Tudo. Entre os estrangeiros, há toda uma panóplia de personagens inquietantes como Xi Jinping, que é “apenas” o Presidente da República Popular da China; Guo Guanchang, o “Warren Buffet chinês”; a incontornável Isabel dos Santos; o General Hélder Vieira (mais conhecido como Kopelipa); e Patrick Drahi, o novo dono da PT. Entre os portugueses, os autores destacam Américo Amorim, o rei da cortiça; Paulo Azevedo, o sucessor do império Sonae; António Mota, o Presidente do Conselho de Administração da Mota Engil; Pedro Soares dos Santos, o herdeiro do Grupo Jerónimo Martins; e Pedro Queiroz Pereira, “o último grande capitão da indústria”.
Como se verifica, a economia portuguesa não está, por enquanto, completamente entregue a estrangeiros. Há capital português em grandes empresas e há grandes empresas com capital controlado por portugueses.
Os autores dedicam um capítulo do livro àqueles que chamam “intermediários”. Serão opinion makers, advogados, jornalistas e mestres do spin. Todos sabemos, mais ou menos, quem são e ao que vêm, mas há que destacar neste capítulo um detalhe assustador: as grandes sociedades de advogados, que dominam em pleno o mercado das maiores empresas do país, recusam muitas vezes defender o estado contra os interesses dos seus clientes, obrigando os poderes públicos a procurarem assistência jurídica no estrangeiro. Isto muito graças a estratégias de ética muito duvidosa e altamente dispendiosas, levadas a cabo por empresas como a GALP que, através da criação de “Legal Panels”, contratam todas as sociedades com capacidade para serem players credíveis nas mais importantes disputas legais, de forma a impedir estes escritórios de prestarem serviços ao Estado em questões do âmbito da actuação da petrolífera. É, na verdade, uma estratégia vergonhosa.
Na fase conclusiva do livro, os autores fazem notar, com pertinência indiscutível, que estranhamente os portugueses parecem continuar a acreditar, recorrendo a algum pensamento mágico, que são as instituições da República que exercem o poder no país, atribuindo muito mais importância à política interna e às eleições para os seus órgãos de soberania do que às movimentações nos corredores de Bruxelas, Estrasburgo e Frankfurt. Na verdade, são instituições como a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e o BCE que exercem hoje o poder, de facto, sobre os destinos nacionais. Como Filipe Alves relata com assustador pormenor e arguta capacidade de síntese, o caso GES demonstrou eloquentemente que o Banco de Portugal é não mais que uma sucursal do BCE.
Além do mais, parece aos autores que os novos Donos Disto Tudo não são assim tão diferentes dos velhos. Se estes eram recorrentemente acusados de serem capitalistas sem capital, conglomerados inconvenientemente mistos (operando simultaneamente nos mercados financeiro e não financeiros), não se percebe onde está a diferença, agora. Há investidores chineses que também “pagam o cão com o pelo do cão” e que, inclusivamente, adquirem empresas portuguesas para acederem aos cash flows que lhes vão permitir comprar outras empresas, e assim por diante. Há muitos DDT em Portugal que são capitalistas sem capital como Ricardo Salgado, no fundo, sempre foi.
E quanto à natureza dos conglomerados, as corporações internacionais que investem em Portugal operam, em muitos casos, numa variedade complexa de mercados industriais, energéticos, tecnológicos e, também, financeiros. Não há volta a dar.
No que diz respeito às empresas de capital maioritariamente português, as empresas de fundamento familiar que sobreviveram têm em comum o mesmo que já tinham antes de 2007: as famílias detêm mais de 50% do capital accionista e a gestão é profissionalizada. Pode ser interpretada por um membro da família. Mas este teve que demonstrar académica e profissionalmente que é digno do cargo.
Mas talvez a conclusão mais grave e eloquente desta obra seja esta: se, antes de 2007, a crítica apontada à economia portuguesa pelos sectores mais liberais era que estava excessivamente entregue ao sector público, as recentes privatizações acabaram por manter, paradoxalmente, empresas importantes na mesma esfera pública. O estado detentor do poder é que mudou. Por exemplo: a EDP era controlada pela República portuguesa. Agora é controlada pela República Popular da China.
Há porém, nesta obra, aqui e ali, alguns equívocos. Quando os autores consideram que o mandato da Troika constituiu um “PREC de Direita”, estão a escolher uma terminologia muito infeliz, que só pode ser entendida à luz da sua juventude. Os autores não fazem, nitidamente, qualquer ideia do que foi o PREC e do que era viver num país em que os militares assinavam mandatos de captura. Os autores não têm, claramente, uma noção mínima das práticas do COPCON e nem imaginam o que era trabalhar num jornal do estado nessa altura. Qualquer semelhança entre as metodologias do PREC e da Troika só é válida numa visão do mundo que será, no mínímo, ingénua. Aliás, como o texto reconhece, é este tal PREC de direita que acaba por levar o GES à insolvência, o que não deixa de ser contraditório à análise manifesta. É que, ao contrário dos intérpretes do PREC, a Troika nunca teve um mandato de imposição ideológica, e mesmo que fosse um partido de esquerda que estivesse no poder nos últimos anos, os credores fariam muito provavelmente valer a mesma filosofia draconiana.
Por outro lado há, na análise dos jornalistas, o problema que decorre de um esforço – quase sobre-humano – de manter a narrativa dentro do politicamente correcto. Quando se fala dos investidores chineses e angolanos, por exemplo, o elefante magenta que está sentado na poltrona destas páginas é cautelosamente contornado. Parece que Filipe Alves e António Sarmento não se incomodam muito com o facto de Portugal se ter transformado numa máquina de lavar dinheiro para o regime angolano e numa via verde para as ambições geo-estratégicas da China, um regime ditatorial que é, na verdade, antípoda das verdades que em Portugal consagrámos como universais e que estão até bem impressas na Constituição da República.
Mais a mais, o que faria Filipe Alves se soubesse que, por exemplo, os filhos de Cavaco Silva – ou de qualquer outro Presidente da República – andavam a comprar a economia angolana com fundos que provêm de empresas públicas e negócios obscuros? Teria certamente razões para redigir a reportagem da sua vida, se tal acontecesse. E assim sendo, porque se esquiva a denunciar abertamente o perfil de Isabel dos Santos?
“Os Donos Disto Tudo” é um livro útil. É um livro esclarecedor. É até, considerando o género, um livro muito bem escrito. O que lhe falta é ser um livro ambicioso.
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