A primeira e inevitável reação perante “Os Marcianos Somos Nós” (Gradiva, 2015) é, para quem não tenha privado com o autor ao ponto de conhecer o seu interesse pela ciência, pelo menos, de alguma surpresa. Habituados que estamos a acompanhar a carreira de Nuno Galopim nas áreas da crítica musical e da intervenção cultural, não se suporia um interesse tão específico e abrangente por um planeta ao ponto de originar um livro vasto de informação e bem demonstrativo de uma inegável paixão – mesmo se Marte é daqueles temas que, de um ou outra forma, a todos acaba por interessar.
E a consequência desse efeito de surpresa é seguramente o lançamento da questão: como é que ele se saiu nesta missão marciana? E, bom, podemos dizer que a exploração foi coroada de sucesso e que, esta viagem, nos deixa não apenas fisicamente incólumes como intelectualmente aumentados. Dois bons motivos e um motivo excelente nos levam a esta conclusão: em primeiro lugar, o facto de esta obra estar em linha com a grande vaga de popularidade e visibilidade que a ficção científica conhece na cultura contemporânea, indo da literatura ao cinema, da banda desenhada aos videojogos, da ilustração aos videoclips; em segundo lugar, cada obra nacional que surge no campo da divulgação científica em Portugal, ou nos domínios afins da ficção científica e da fantasia, merece ser celebrada, tal a escassez de produção que se verifica no nosso país; em terceiro lugar, e por razões óbvias, o mais importante, a qualidade intrínseca do trabalho.
Sobre este último motivo importa dizer que o equilíbrio entre a exploração científica do tema e a sua abordagem artística é muito bem conseguido. No primeiro caso, fazendo uma muito completa resenha do conhecimento e das representações de que Marte foi alvo ao longo dos séculos, desde as descrições herdadas da mitologia às sondas que no século XX e XXI foram tornando mais exacto o nosso saber sobre aquele mundo, passando pela importância do telescópio e dos esforços cartográficos efectuados; no segundo caso, analisando a vasta criação verificada no campo da literatura, do cinema, da música ou da banda desenhada que teve o planeta vermelho como pretexto.
Por isso, podemos mesmo dizer que se a obra ganha em ser lida como um todo, articulando aquelas duas dimensões, nada impede que a mesma seja disfrutada parcialmente, em função dos interesses predominantes de cada leitor. Para aqueles que se interessam por um conhecimento tão rigoroso quanto possível do planeta, muito úteis serão as referências aos nomes fundamentais da ciência que se ocuparam deste tema, uns mais populares, outros menos notáveis, como Copérnico, Kepler, Galileu, Flammarion, Cassini, Huygens, Schiaparelli, Lowell, Wernher von Braun, Robert Zubrin, Ben Bova ou Carl Sagan.
Controvérsias e especulações, quimeras e expectativas são aqui abordadas com grande clareza e precisão. Para os que preferem os delírios fantasistas ou as previsões mais verosímeis da ficção ou da fantasia científica, encontram também aqui uma espécie de guia de exploração que nos remete para as obras fundamentais de muitos escritores e cineastas.
Na literatura, lá encontramos reenvios para os nomes fundamentais da ficção científica: da omissão do tema na obra de Verne, passando por pioneiros mais ou menos conhecidos como Percy Greg, o autor inglês de Zodiac: Story of a Wrecked World (1880), Robert Cromie, a quem se deve A Plunge into Space (1890), ou Alexander Bogdanov, criador de Red Star (1908), até aos consagrados Ray Bradbury, a quem se devem as The Martian Chronicles, de 1950, Arthur C. Clarke (The Sands of Mars, 1951), Robert Heinlein (Stranger in a Strange Land, 1961), Frederik Pohl (Man Plus, 1976), Kim Stanley Robinson (com Red Mars, Green Mars e Blue Mars, trilogia dos anos 90), Brian Aldiss, Isaac Asimov ou Kurt Vonnegut.
Da literatura ao cinema vai um saltinho e em muitos casos a ligação é literal: o clássico de H. G. Wells de 1898 War of the Worlds, as aventuras de John Carter em Barsoom que Edgar Rice Burroughs contou em diversas histórias na década de 1910, a obra Aelita de Alexei Tolstoi, de 1923, ou We Can Remember it for You Wholesale, de Philip K. Dick, escrito em 1966 e que originou o filme Total Recall, de 1990, são exemplos de adaptações que, com sucesso desigual, tiveram lugar.
Mas a relação do cinema com Marte vai além daquelas adaptações: ainda que não em filme, mas através da rádio, o brilhante Orson Welles e os seus cúmplices do Mercury Theatre lançaram em 1938 o pânico com a emissão da obra de Wells. Mas logo nos primeiros anos do cinema surgem curtas que têm Marte como alvo, e mesmo a animação não se inibiu de ter este planeta como assunto em curtas de personagens como Koko, the Clown ou Felix, the Cat, logo nos anos 20. Os serials ocupar-se-iam de aventuras no planeta vermelho nos anos 30, 40 e 50, sendo Flash Gordon a mais popular das personagens que então enfrentaram os perigos e os encantos daquele mundo. Nos anos 50, a idade de ouro da ficção científica cinematográfica, obras como Rocketship X-M, de Kurt Newman (1950), War of the Worlds, de 1954, adaptação produzida por George Pal e realizada por Byron Haskin, ou Devil Girl from Mars, de 1954, são títulos incontornáveis com Marte como tema fulcral. Nas décadas seguintes Robinson Crusoe on Mars (1964), Quatermass and the Pit (1968) Capricorn One (1977), Mars Attacks! (1996), Mission to Mars (2000), Ghosts of Mars (2001) ou a nova versão de War of the Worlds, concebida em 2005 por Steven Spielberg, entre outros, confirmariam e continuariam o interesse do cinema por este tema. Contando-se, entre estes títulos, obras de Tim Burton, Brian de Palma, John Carpenter ou Spielberg bem podemos dizer que Marte convoca uma sensibilidade muito especial…
Além do cinema e da literatura, Galopim vai ainda a áreas artísticas em que Marte tem uma presença menos constante, mas nem por isso irrelevante: entre as várias referências da banda desenhada, destaque para Manhunter from Mars, companheiro dos tão vistos e falados actualmente Batman ou Superman na DC Comics. Na música, destaque para nomes como David Bowie, Vangelis, Muse, 30 Seconds to Mars, Flaming Lips ou o português José Cid, que de modo mais literal, mais pontual ou mais efabulatório se ligaram ao planeta vermelho. A própria poesia se estenderia até Marte, como em Genesis, o poema que Frederik Turner dedica a este mundo em 1988.
Se dissemos que cada leitor poderá encontrar os seus motivos de interesse próprios na obra e que esta se abre a várias formas de recepção, a verdade é que muito se ganha em seguir a proposta estrutural do livro, articulando imaginação e informação, ficção e ciência, mesmo que essa articulação seja dinâmica, com a primeira a querer suplantar a segunda e esta sempre a condicionar aquela. Se seguirmos lado a lado estes dois vectores poderemos compreender, de modo mais abrangente, os temas que aqui são abordados: as origens e causas da nomenclatura, as semelhanças com a terra e a consequente possibilidade de vida inteligente, o aspecto dos marcianos (Verdes? Peludos? Microscópicos?), a exigência das viagens, a viabilidade das colónias ou a necessidade da terraformação, as utopias comunistas ou feministas ou as ditaduras implacáveis que governam as ficções.
Concluindo: um livro claramente escrito e consistentemente estruturado, rico em análise e informação, certificado pela revisão científica de Carlos Fiolhais, que tem como brinde um conjunto de fantasiosas ou esforçadas ilustrações de filmes e livros e que, no epílogo, deixa a questão em aberto com os programas espaciais europeu, americano ou chinês a manterem um olho em Marte. Portanto, a odisseia continua, pelo que um regresso do autor ao planeta nosso vizinho não deixa de ser uma ideia desejável. Quem sabe…
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