Licenciado em Matemática com pós-graduação em Lógica Medieval, António José Gonçalves de Freitas fez tese de doutoramento sobre a origem do pensamento filosófico grego, bem como estudos avançados em línguas e culturas do Próximo Oriente. É especialista em escrita cuneiforme, em sumério, em acádio e em outras línguas semitas, desenvolvendo investigação na área das línguas indo-europeias, sobretudo o hitita, o sânscrito e o grego.
Este primeiro e monocórdico parágrafo é necessário porque “Os Deuses e a Origem do Mundo” (Quetzal, 2015) é uma antologia de textos cosmogónicos, na maior parte traduzidos pelo autor e que resulta da sua vasta erudição, tanto no assunto versado como nas línguas de origem.
Ao longo destas saborosas páginas salta à vista o protagonismo da palavra e da água como agentes da criação. A importância dos nomes é inequívoca. Há aliás deuses que só existem quando são nomeados e o cosmos precisa do substantivo próprio como o dia da luz solar. A água é omnipresente e transversal, inundando os mitos criacionistas um pouco por toda a parte da história e da geografia. Mas o importante a reter para apreciar a obra de António Freitas, como ela deve ser apreciada, é que as cosmogonias são afinal literatura. E literatura primordial. Os textos são amiúde de beleza esmagadora, as frases pesam loucamente sobre os sentidos e o uso da repetição estrófica em anáforas e diáforas constantes deixa a sua marca. É praticamente impossível escapar ao potencial encantatório desta protoliteratura, porque reflecte a sensibilidade artística dos povos que a criaram, mas também porque nos traz o sabor das suas preocupações imediatas. A importância do sexo e da agricultura no enredo mítico, por exemplo, dá-nos um sentido pragmático da abordagem transcendental.
Um detalhe que incomodará certamente a sensibilidade do leitor mais atento, é que em muitos destes aparelhos mitológicos os deuses não são os criadores do cosmos e as forças enigmáticas que estão por trás da criação acabam por não ser claramente reveladas. Aqui e ali, os deuses sabem tanto das origens do cosmos como nós, os humildes mortais. Chega a ser frustrante.
Mas uma das conclusões mais eloquentes, e em simultâneo mais divertidas, desta antologia, é a evidência de que os mitos criadores relacionam-se intensa e despudoradamente uns com os outros, numa iniciática entropia de plágios. As cosmogonias gregas vão buscar Prometeu aos mitos primordiais da Suméria e Hesíodo fala de forças não divinas, mas sobrenaturais, que devem ter sido roubadas aos vedas da Índia. Pelo meio, copia muita coisa da Mitologia Hitita que também é generosa com alguns dos seus elementos fundamentais, presentes na iniciação grega e suméria: o céu, a terra e a fertilidade que resulta dessa separação. Aliás, a maior parte dos mitos cosmogónicos parecem simpatizar imenso com esta última ideia. Por outro lado, a Teogonia de Dunno relaciona-se com a queda impenitente para o incesto que é rotineira na mitologia grega; os mitos judaico-cristãos relacionam-se com os gregos por causa do carácter sagrado, purificador e fertilizante da água, bem como da força criadora do verbo. A água, como já referimos, está por todo o lado. E a serpente, a danada da serpente, une os mitos hitita, grego e bíblico. É a promiscuidade total de conteúdos, talvez resultante da imanente presença da tradição oral – e do seu carácter endémico sobre as civilizações.
Especulações comparativas à parte, António de Freitas reúne nesta antologia os textos fundamentais de sete cosmogonias, a saber:
A Cosmogonia Suméria, que data do terceiro milénio antes de Cristo, foi escrita em caracteres cuneiformes, gravados em tabuinhas. Enlil é a entidade paterna dos deuses, que separa o céu da terra e que, através desse processo de ruptura, gera a dupla de divindades An e Ki. Estes fertilizam a terra e geram uma quantidade desesperante de outros deuses, numa orgia de gritos. A sedentarização e a agricultura fazem já parte do mito. O texto, carregado de estrofes que se repetem numa poderosa oração tântrica, é profundamente lírico:
«Enlil,
Quem separou o céu da terra,
quem separou a terra do céu.
Enlil, Senhor Nunamnir,
O Senhor, que não reverte a uma ordem,
que separou o céu da Terra,
que se separou a terra do céu,
Quem separou o céu da terra.»
Da Cosmogonia da Babilónia traduz o autor as nove primeiras linhas da primeira tabuinha do Canto da Criação. Aqui, é a mistura das águas salgadas com as doces que dá origem a tudo o que existe. Neste mito, há um tempo antes dos deuses, ou melhor: há um tempo em que os deuses ainda não tinham sido nomeados.
«Quando do alto do céu ainda nada havia sido chamado pelo seu nome,
e aqui em baixo na terra nada havia sido nomeado
Apsu, o primeiro, o progenitor de tudo o que existe, e mummu T’iamat misturaram as suas águas.»
A Teogonia de Dunnu ou Mito de Harab é uma teologia centrada na cidade de Dunnu, de cultura babilónica. Harab (arado) e Ki (Terra) estabelecem uma relação entre a vida agrícola e pastoril que serve de contexto ecológico para uma arrepiante sequência de parrícidios e incestos.
«Então o deus do gado tomou a Terra-mãe como esposa.
E matou o pai, o Arado, e colocou-o a descansar no seu amado Dunno.
O deus do gado assumiu o domínio do pai.
Mas então casou-se com o mar, a irmã mais velha e o seu filho foi o deus dos rebanhos.
O deus dos rebanhos, filho do deus do gado, veio e matou o pai em Dunnu.»
No que diz respeito ao Mito Criacionista de Israel, são traduzidas passagens do Antigo Testamento (Genesis) e do Novo (evangelhos segundo S. João e S. Mateus). É curioso verificar que no Genesis o gado precede o homem, mas é o homem que completa a criação, nomeando os restantes seres que Deus criou. E enquanto no evangelho Segundo S. Mateus, o baptismo de Cristo é uma renovação do acto criador através da água, no Evangelho Segundo S. João ficamos a saber que no princípio estava o Verbo e não Deus. Mesmo considerando que logo se explica que Deus e o Verbo são entidades indistintas, não deixa de ser espantosa a importância atribuída à palavra como força criadora. Este evengelho é interessante também pela evidente convergência estilística com o texto cosmogónico Sumério já mencionado:
«No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus.»
Os Vedas da Índia são bastante contidos em termos mitológicos mas, apesar dessa parcimónia ou precisamente por causa dela, geraram posterior e paradoxalmente aparelhos metafísicos com dezenas de milhares de deuses. Os hinos védicos datam do século X a.C., sendo anteriores a todas as tradições literárias com excepção dos textos hititas. O autor traduz o Hino da Criação védica, texto que produz mais perguntas que respostas, lembrando técnicas socráticas muito posteriores, e onde os próprios deuses não têm conhecimento pleno da mecânica criacionista nem a certeza se serão realmente responsáveis pela criação.
«No princípio a escuridão estava escondida na própria escuridão.
Indistinta, tudo era água.
(…)
Fundou isto ele ou não?
Ele, que no mais alto dos céus é omnividente,
Somente ele o sabe, ou não o sabe.»
Os Mitos Hititas são fruto inspirado de uma civilização indo-europeia da Anatólia. Os hititas partilhavam com o próximo oriente a escrita cuneiforme, embora tivessem uma língua parente do grego, do latim e do sânscrito. Fundadores de conceitos cosmogónicos que vamos encontrar em grande parte das literaturas posteriores, os mitos hititas “inventam” a separação entre o céu e a terra, que dá lugar ao mundo. O problema é que o deus rei Telepinu desaparece e o cosmos fica doente e estéril. Neste sentido da narrativa, podemos dizer que a tradição hitita é anticosmogónica. Mas depois de muitas catástrofes, as entidades divinas lançam uma apelo à deusa mãe, criatura sábia e prágmática que envia uma abelha na senda do Desaparecido. O bichinho detective encontra o deus dos deuses soterrado e letárgico, mas desperta-o (com uma ferradela?) e assim, com o regresso da vigília enérgica e empreendedora de Telepinu, é restabelecida a ordem do universo. É interessante verificar que, para os hititas, quando a vida na terra fica difícil, até os deuses passam mal:
«(…)
os humanos e os deuses, mais ainda de fome morrem
o grande-deus-sol festival preparou
e os mil deuses convidou
comeram eles mas não se saciaram
beberam eles mas não satisfizeram a sua sede.»
Os Mitos Gregos são cosmogonias lógicas ou semi-lógicas e, em alguns casos extremos, ateias. A água é o elemento unificador das várias literaturas e surge como influência óbvia de mitos anteriores, provenientes do Próximo Oriente.
Na Teogonia de Hesíodo (século VIII a.C.) o Chaos é o elemento primário e principal, mas não divino. E enigmático, claro, porque não foi criado pelos deuses. Pelo contrário, precede os deuses. Mito de fundamentos lógicos, contribui porém com ontologia divina em quantidade industrial: Gaia, deusa da Terra e Urano, deus do céu e toda uma subsequente panóplia de super-heróis que vão oferecer à História Universal da Metafísica as aventuras e desventuras do Olimpo. Porém, Hesíodo oscila entre a criatividade e o cepticismo, colocando despudoradamente o problema da verdade na construção mítica, retirando poderes criadores aos deuses, meros e desastrados executivos do destino, e atribuindo ao sexo a importância demográfica que tem para os mortais: os deuses só se começam a multiplicar quando Eros inventa o desejo sexual que vai unir Urano a Gaia.
Já na versão de Ferécides de Siro (mestre de Pitágoras – século VI a.C), Chthonie é a deusa mãe e a Terra antes de ser fertilizada. Depois de fertilizada, será Gaia, mãe de Zeus, e Zeus será o deus do céu e da tormenta. Pela primeira vez na tradição grega, surge Chronos e o factor tempo. Enquanto isso, o Poeta espartano Álcman introduz na sua cosmogonia um buraco primordial – Poros – onde se encontra toda a matéria antes de haver espaço e tempo. Álcman propõe um demiurgo – Tétis. E o deus da Morte – Tekmor.
Talvez influenciado pela dialéctica do espartano, Platão sugere também o seu demiurgo, o “sumo-bem” que não é capaz senão daquilo que é bom e belo, ou seja, uma espécie de designer da eternidade. Em Timeu, a sua obra cosmogónica, Platão indica ainda os elementos fundamentais do universo que mais tempo duraram como taxonomia de referência: fogo, terra, água e ar.
Outras cosmogonias gregas há – as órficas – em que os conteúdos primordiais manifestam menos amor pela filosofia e uma sensibilidade mais fantasista: a noite primordial de que provém o casal divino que cria a humanidade, o ovo primeiro que vai incubar protogonos, o primeiro ser, que até pode afinal consubstanciar-se em Zeus, mas um Zeus que não é criado, que nunca nasceu, que nunca morreu, que simplesmente é.
Voltando a Platão, o leitor não pode deixar de notar, com um sorriso talvez cínico no pensamento, que a obsessão pela virtude leva o grande mestre da Academia de Atenas a certos exageros: o cosmos, afinal, pode até dever a sua existência exuberante ao facto de o demiurgo recusar a vilania do ciúme.
«Deixe-me dizer-lhe então, por que o Demiurgo gerou o cosmos. Ele era bom, e o bem não pode ter ciúmes de coisa alguma. Por ser livre de ciúmes, ele desejava que todas as coisas deviessem o mais semelhante a ele próprio. Este princípio só pode ser aceite como o mais verdadeiro de todos, tal como os homens sábios o aceitam, de que tudo foi gerado pelo artífice e que o cosmos é bom.»
É a isto que se chama idealismo. E é por isso que as cosmogonias são belas. Mostram ao futuro como os homens antigos tinham capacidade poética e coragem bastante para valorizar e consagrar o poder das boas ideias.
E esta recolha de António de Freitas decorre, de facto, de uma ideia que é boa e que é bela. Como Platão gostava.
2 Commentários
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