Foram muitas as referências artísticas que marcaram definitivamente as últimas décadas do século XX, influenciando as gerações seguintes, como uma espécie de jurisprudência cultural. Tal aconteceu em várias esferas e universos, da pintura ao cinema, do teatro à música, da arquitectura à comédia. Nesta última área, em particular, destacaram-se alguns nomes britânicos como, por exemplo, Benny Hill, Mr. Beans (Rowan Atkinson) ou os Monty Python.
Em comum estava uma abordagem nonsense da própria comédia, uma visão desafiante da lógica do pensamento e do próprio conceito de fazer rir – ou sorrir. Entre as “estrelas emergentes” desse movimento destaca-se um rapaz alto e tímido de Westen-super-Mare, Somerset, que, contrariando toda a normalidade, se tornaria numa estrela planetária: uma lenda.
Falamos de John Clesse, conhecido na escola primária como “Chesse” (queijo), mente brilhante e divertida que recentemente nos ofereceu “Ora, como eu dizia” (Planeta, 2015), uma autobiografia generosa, algo inesperada e tentadoramente diferente.
Ao contrário de outros livros do género, Cleese chutou para longe escândalos ou podres de bastidores, concentrando-se na vida em si mesma que, quase por “acaso”, lhe reservou um enorme sucesso. Mesmo quando há algumas referências a terceiros, o contexto é de tal forma cómico que se eliminam quaisquer resquícios de animosidade. Esqueça contos escabrosos e entre numa espécie de viagem ao cérebro de um genial comediante.
Neste percurso está bem patente a inteligência de Cleese, no fundo uma pessoa introspectiva, muito apegado à sua mãe, mas que, por obra divina ou quejandos, nasceu com uma capacidade anormal para o absurdo e farsa. Ao contrário de muitos outros casos, a comédia de Cleese é um fortalecimento do Q.I. alheio, uma de bomba de gás hilariante que atingiu o seu expoente nas séries “Monty Python’s Flying Circus” e “Fawlty Towers”, na sétima arte via Monty Phyton – “Em busca do cálice sagrado” ou “A Vida de Brian” – ou mais a solo em “Um Peixe Chamado Wanda”.
“Ora, como eu dizia” é também um livro sobre a própria escrita do acto de fazer rir, pois tanto Cleese como os seus companheiros de Cambridge – e mais tarde de Monty Python (Graham Chapman, Eric Idle, Michael Palin ou Terry Jones) – eram, antes de performers, produtores de comédia. Neste livro, o foco não está na descrição dos sketchs, nas cenas dos filmes, mas sim, por exemplo, na humanidade de Cleese de se sentir nervoso antes de cada cena, no medo de as coisas não serem bem recebidas ou sequer entendidas pelo público.
Ao folhear esta autobiografia, saltam à vista as descrições reais e quotidianas que invariavelmente resvalam para o riso, pois é a sua tendência natural. Cleese, que confessa ter vivido uma excelente experiência académica de ambos os lados da barricada, redige uma verdadeira tese sobre o acto da natureza humana. Mas vai mais longe, levando o leitor ao cerne daquilo que o inspira como comediante e pessoa, à forma como conseguiu moldar um espírito criativo e individualizado que fez nascer uma nova forma de fazer humor, arte que se disseminou por diversas áreas da dita cultura moderna e que ousou aplicar um determinado estudo psicológico do entendimento humano em situações banais – e até mesmo exageradas.
Há ainda espaço para deambulações através de lembranças, algumas delas com direito a fotografia: a sua primeira aparição pública na Escola Primária St. Peter, aos oito anos; as tournées pela Nova Zelândia e pelos Estados Unidos; referências ao acto de contrair matrimónio (ao primeiro casamento); o primeiro encontro com Graham Chapman; os problemas com a BBC; a criação dos Monty Python; a experiência de trabalhar com Peter Sellers, David Frost ou Marty Feldman; ou a passagem pelo sistema de ensino enquanto professor.
Exemplar assertivo na arte de contar não uma história mas sim uma vida simples – e recomendado a todos os fãs de Cleese e dos projectos criativos a si associados -, “Ora, como eu dizia” é um interessante e inteligente “monólogo” de um homem tímido, fã de críquete e esqui aquático – que se revelou um verdadeiro génio comediante (mas que nunca se assumiu como tal) -, mas também o reflexo de uma humorística Britânia e dos seus maiores actores, elementos máximos de algo completamente diferente.
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