Enquanto a maioria dos escribas portugueses se vai balançando entre redes sociais, colunas de jornal e artigos avulsos para construir uma imagem que não se desvaneça, há um deles que, tal como um OVNI, raramente é avistado, a não ser quando surge a espaços numa entrevista ou, o que é mais provável, quando o seu nome surge como vencedor de um qualquer prémio literário. Se a literatura portuguesa fosse aparentada ao futebol, Gonçalo M. Tavares teria um campeonato só para si.
O escritor português tem construído, ao longo dos anos, uma obra verdadeiramente singular, viajando do conto ao romance, passeando entre a poesia e o ensaio, caminhando sempre na corda bamba com a vertigem da experimentação a seus pés. Nos tempos mais recentes, atreveu-se a pegar nos Lusíadas para depois os corromper. Assim, depois de decalcar estruturalmente a obra, copiando-lhe a segmentação, os cantos e as estrofes, transformou o conceito de epopeia numa anti-epopeia, criando um dos mais interessantes e arriscados livros que a literatura portuguesa viu nascer nos últimos anos.
Este ano, Gonçalo Tavares trocou a Índia pela Grécia, revisitando e dinamitando os célebres diálogos socráticos, género de obra literária em prosa desenvolvido na Grécia Antiga por volta do século IV a.C. e celebrado nos diálogos de Platão ou nas obras de Xenofonte. “O Torcicologologista” (Caminho, 2015), estranho e difícil nome de pronunciar (experimentem dizê-lo rapidamente três vezes de seguida) é um livro de ficção carregado de ironia e filosofia, dividido em duas partes bem distintas entre si.
Na primeira – intitulada “Diálogos” -, em diálogos onde Vossa Excelência fala para Vossa Excelência, começa-se por planear uma revolução, que não é mais do que um exercício de ginástica social ou política: se correr bem, acaba com vidros partidos; se correr mal, com cabeças rachadas. Revoluções com hora marcada, onde não são permitidas desafinações e que reclamam, para a cidade, uma mudança de oxigénio.
Não faltam os habituais postais metafóricos e poéticos – onde pelo meio se fazem algumas referências ao enorme Alexandre O’Neill: da gula como um pecado auditivo, semelhante ao que cometem os maus ouvintes; dos minutos e das horas como a paisagem temporal; do espelho retrovisor como algo decisivo para a melhor estratégia de ataque – costas, nuca, calcanhar e olhos; do urbanismo como ciência médica; do destino como um parque de estacionamento; das duas metades do corpo – a corajosa (os olhos) e a cobarde (as pernas) -, em que uma das Excelências assume a sua predestinação cobarde e trágica – “as minhas pernas não estão ao nível moral dos meus olhos“; de uma guilhotina que corta ideias tolas e perigosas presas às cabeças (e talvez as próprias cabeças), deixando uma interrogação pertinente – “Quanto tempo leva uma ideia a espalhar-se desde a cabeça até ao resto do corpo?“. Fala-se também de dança e da preguiça, de saltos e quedas, de grandes e pequenas questões que atravessam a existência individual e colectiva.
O twist e a irreverência destes diálogos pós-socráticos estão no modo em como o autor mistura a filosofia e o habitual desencanto a que os filósofos estão condenados com um humor tremendamente corrosivo. Há, por exemplo, um conjunto de definições absolutamente deliciosas: a ideia define-se como um material intranquilo; a moda é algo que não tem um itinerário no tempo – como as ideias -, apenas no espaço; o acidente é aquilo que introduz a dor no que se previa ser prazer ou, pelo menos, tédio. A compor o ramalhete e para acabar de vez com a seriedade, avança-se com uma lista de palavras começadas por “C”: caguincha, cagaço, caganifrates, caga-lume, caganita. Mas não se assuste o leitor pois, como se lê a certa altura, “o som pode ser brejeiro mas a definição é requintada.”
Já em “Cidades”, a segunda parte, conta-se a vida de forma anónima através dos números, cada um deles remetendo para pequenos gestos que podem conduzir a grandes tragédias e contratempos. Uma cidade moderna, doente, obsessiva – e obcecada – e muito carente de esperança.
“O Torcicologologista” vem cimentar o estatuto de Gonçalo M. Tavares como um escritor diferente de tudo o que vamos lendo por aí, um autor que parece caminhar numa linha de fronteira que divide, de forma (quase) imaginária, as fronteiras entre o génio e a loucura. Sejam bem-vindos ao estranho, desconcertante e genial mundo de Gonçalo M. Tavares.
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