Originalmente publicado em 2012, “O Outro Lado do Paraíso” (Quetzal, 2015) – no original The Lower River -, de Paul Theroux chega agora a Portugal numa edição da Quetzal. E valeu a pena a espera, dado que se trata de uma obra magnífica, de um fôlego incrível, por vezes tão vívida na descrição das paisagens africanas, dos seus sons e cheiros, que o leitor sente-se viajante, transportado directamente para a acção.
Ellis Hock, a personagem principal, encontra-se numa encruzilhada emocional, enredado numa monótona rotina que pouco a pouco o asfixia. Proprietário de uma loja de roupas para homem, que herdou do pai, Hock passa os dias como testemunha privilegiada do lento mas inexorável declínio do outrora próspero negócio, consequência natural dos centros comerciais que se multiplicam na zona. Para piorar a situação, e como consequência de algumas mensagens que a esposa de Hock encontra no telemóvel do marido, mensagens em que este troca comentários de cariz romântico com as esposas de alguns dos seus clientes, Hock vê a sua mulher pedir o divórcio. Preocupada com possíveis complicações futuras, a única filha do casal insiste em que o pai lhe pague imediatamente o valor da herança a que terá direito. Sozinho, Hock olha para o futuro e nada vislumbra a não ser um perpétuo e solitário aborrecimento.
Algumas semanas depois destes acontecimentos, Hock é contactado por um velho conhecido que lhe pede ajuda para identificar uma cobra que uma amiga mantém num apartamento. Hock, que na sua juventude serviu como voluntário numa remota aldeia africana, ficou conhecido na referida aldeia como o homem sem medo das cobras, abundantes na região. E é ao visitar o apartamento em causa, em particular no contacto com a pitão que se encontra no mesmo, que Hock mergulha num saudosismo por um passado que lhe surge, agora, como um período idílico da sua vida, talvez o único momento em que ele terá sido verdadeiramente feliz.
À medida que os dias vão passando, uma ideia começa a ganhar forma na cabeça de Hock, ideia que se vai transformando numa obsessão: regressar à aldeia de Molobo, no Malawi, e reencontrar-se a si mesmo e à felicidade perdida, abraçando um qualquer projecto que o faça sentir-se novamente útil. Hock trata dos preparativos e rapidamente parte rumo a África, ansioso por dar um novo rumo à sua vida. Mas depressa se apercebe de que aldeia e o próprio continente mudaram muito nos 40 anos que passaram desde a sua anterior visita. Ao contrário do Éden do qual se recordava, a realidade com que Hock se depara é dura, violenta e por vezes impiedosa. Pouco tempo após a sua chegada, Hock recebe de Gala, uma paixão frustrada vivida na sua primeira passagem por Molobo, um sombrio mas premonitório aviso: “eles vão comer o teu dinheiro, (…) quando o teu dinheiro se for, vão comer-te a ti.”
Hock tudo tenta para conseguir recriar o ambiente e as sensações que experienciara anteriormente mas acaba por desistir, derrotado pela apatia amargurada em que tanto a aldeia como os seus habitantes parecem mergulhados. Desiludido, apercebe-se que se tornou numa espécie de prisioneiro, com todos os seus movimentos a serem vigiados. E, tal como Gala antecipara, acaba por ser reduzido pelo líder incontestado da aldeia, Festus Manyenga, a uma fonte fácil e aparentemente inesgotável de dinheiro. À medida que o tempo passa, Hock vai-se sentido mais e mais como um animal encurralado, oprimido de forma asfixiante pela rotina da aldeia, que começa a parecer-se cada vez mais como uma armadilha mortal à qual terá que escapar. Hock decide tentar uma fuga desesperada, roubando primeiro a mota de Manyenga, prosseguindo depois rio abaixo numa pequena embarcação. E é neste ponto que a narrativa de Theroux cresce de intensidade, com a odisseia de Hock a ganhar contornos de epopeia, uma luta frenética pela sobrevivência. Traído a meio da sua fuga, vê-se obrigado a descer o rio sozinho. À deriva, acaba por encontrar uma aldeia abandonada no meio do nada, habitada apenas por crianças e adolescentes, na sua maioria portadoras do vírus da SIDA. Num cenário dantesco, e após uma experiência surreal motivada por uma oferta de comida por parte de uma ONG, um Hock faminto e desesperado reencontra Manyenga, que o leva de volta a Molobo.
Esmagado por tudo o que o rodeia, humilhado pela sua malograda tentativa de fuga, Hock parece aceitar a ideia que o fim se aproxima, sentimento agravado tanto pelo facto do seu dinheiro ter acabado – o que significa que ele perdeu a única coisa que aos olhos da aldeia o tornava útil – como pela rápida deterioração da sua condição física. Num final alucinante, Hock vê chegada a hora de pagar o derradeiro preço pela gritante discrepância entre o seu idealismo e a realidade concreta com que se deparou no regresso a Molobo.
Mestre na literatura de viagens, Theroux consegue com esta obra criar uma história apaixonante, ao mesmo tempo que critica, de forma mais ou menos velada, a postura ao mesmo tempo arrogante e paternalista do mundo dito “ocidental” pelo continente africano. Uma postura marcada por um jogo de equívocos que coloca em confronto permanente a percepção que nós criamos do “outro” e a reacção deste perante essa criação, muitas (demasiadas?) vezes redutora e simplista. Hock e Molobo parecem, afinal, servir de alegoria para a relação entre o homem branco e África, uma relação tensa, desequilibrada, potenciadora de revolta e frustração. Como declara a certa altura Manyenga perante um atónito Hock, “insultais-nos com comida, lançais-nos víveres como se fôssemos animais. Nós já não somos os vossos macacos.”
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