Há uma sensação agridoce em cima da mesa quando um tema de conversa incide sobre jantares em família. Há pessoas capazes de desmarcar encontros com amigos para se sentarem à mesa com a família, cada elemento com os seus defeitos e histórias de vida, por puro prazer – para se juntarem a um ambiente de partilha, de gargalhadas e seriedade –, e outros que o fazem por obrigação e boa educação. Cada geração e cada ser humano estabeleceu uma relação diferente com a sua família mas permanece, na maioria dos casos, uma sensação de defesa e de sobrevivência para com os elementos da mesma árvore genealógica. Coisas de família, em família devem ficar, já diz o reconhecido provérbio, mas qual a melhor atitude para se defender um filho envolvido num crime exposto em praça pública? Os meios justificam os fins quando é o futuro de um primogénito que está em cima da mesa?
“O Jantar” (Alfaguara, 2015), do holandês Herman Koch, vai buscar toda a amargura e escuridão do ser humano para cima da mesa. Numa noite de verão em Amesterdão, duas famílias encontram-se num restaurante sofisticado, com todos os pratos gourmet a que têm direito, para colocar a conversa em dia e saber as novidades sobre os filhos, o trabalho de cada um. Os acontecimentos são descritos por Paul, que se dirige na primeira pessoa ao leitor a partir da primeira página («Fomos jantar ao restaurante. Não vou dizer qual, porque senão da próxima vez estará provavelmente cheio de pessoas que vão verificar se lá estamos de novo»). Com Claire, a esposa, esperam pela cunhada e pelo irmão, Serge Lohman, prestes a tornar-se um primeiro-ministro de sucesso na Holanda. Trata-se de «uma pessoa que nunca reserva com três meses de antecedência», antes garante mesa num dos restaurantes mais requintados de Amesterdão «no próprio dia, fá-lo por desporto», conta o irmão Paul. Uma família com poder dentro da sociedade holandesa que se reúne por puro prazer, ao que todas as aparências indicam. Mas, como Tolstoi escreveu – e também foi referido no livro –, «cada família infeliz é infeliz à sua maneira», e estes dois casais não se juntam por lazer. Ao chegar o prato principal, a verdadeira raiz dos problemas é colocada em cima da mesa para ser exterminada. Os filhos destes casais contêm raízes venenosas para a sociedade, prestes a serem expostas em praça pública, mas nem todas as quatro pessoas sentadas à mesa concordam com a solução do poderoso político Lohman.
Dividido por cada momento da refeição – aperitivo, entradas, prato principal, sobremesas e digestivo –, cada página de “O Jantar” vai deixando o leitor indisposto, tal é a quantidade de comida crua contada com o avançar da leitura. Herman Koch coloca suavemente toda a maldade do ser humano em cima desta mesa de jantar, à medida que os pratos vão sendo servidos. O leitor é convidado a explorar o passado de cada personagem enquanto avança na refeição, como um convidado e, consequentemente, juntando-se ao relato dos factos. Como uma boa história bem contada, o êxtase é guardado para a refeição principal, em que os estômagos estão preparados para uma boa dose de comida envenenada.
Inspirado na morte da sem-abrigo dentro de uma ATM em Barcelona, Herman Koch dá a conhecer o crime hediondo cometido pelos filhos do casal e a dúvida prevalece: jovens com 15 ou 16 anos conseguem conviver com o peso na consciência? Até que ponto os progenitores conseguem ultrapassar a evidência dos factos para proteger os filhos? Questões intrínsecas que mostram a verdadeira faceta do ser humano, não tão agradável e bela como aparenta.
Bem construído e com personagens bem desenhadas – é impressionante a complexidade do protagonista Paul e a capacidade de manipulação da esposa Claire –, Herman Koch serve um excelente thriller psicológico, capaz de provocar indigestão aos leitores mais sensíveis. O aviso fica feito: cuidado com os jantares marcados em família, o sabor agridoce da refeição pode perdurar no paladar dos mais sensíveis.
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