Ler Philip K. Dick é uma experiência quase religiosa. “O Homem do Castelo Alto” (Saída de Emergência, 2015), numa bela edição da Saída de Emergência, não é excepção. Clássico aclamado do autor, é uma obra de história alternativa e, como todas as obras de K. Dick, é também mais do que isso. Contém nas suas páginas a humanidade, é transcendente, vertiginoso e sublime, incontornável. A edição em questão conta, além do romance, com um ensaio de Nuno Rogeiro sobre o autor e a sua obra, além de uma lista detalhada dos livros de K. Dick, completa com breves resumos para aguçar o apetite de neófitos e conversos. Um luxo, portanto.
Mas o verdadeiro luxo é ler Philip K. Dick, embarcar numa experiência que nos muda enquanto leitores e pessoas. Neste caso, entramos num mundo alternativo em que as potências do Eixo venceram a II Guerra Mundial, tendo os antigos Estados Unidos da América ficado divididos entre o Japão e a Alemanha. A narrativa tem lugar em 1962, com a nova ordem mundial devidamente estabelecida, e segue os caminhos paralelos e interligados de várias personagens que se movem num labirinto de acasos e acontecimentos decisivos. Há, obviamente, uma trama política intensa e emocionante e a criação de um mundo perfeitamente verosímil – e, portanto, assustador -, mas são as histórias mais quotidianas que realmente nos emergem nesta realidade e nos permitem compreender a magnitude da opressão. São elas que nos fazem sentir esta história de “e se” de uma forma verdadeiramente visceral.
Philip K. Dick tem o dom de escrever a transcendência através da banalidade, seja de objectos, situações ou discursos. Tem um dom de compreender a humanidade que recorda Dostoievski; sabe o que nos move e o que escondemos, lê-nos a alma, esquadrinha-nos a natureza, faz a cartografia da nossa mente e dos seus mecanismos. Verdade seja dita, a ficção científica e, neste caso, a história alternativa, prestam-se a isso: cria-se um mundo estranho, uma realidade à partida díspar da nossa, monta-se um cenário fantasioso e especulativo para, no fundo, erguer um espelho e fazer-nos encará-lo e encarar-nos. E, de repente, no meio da fantasia, do delírio, das quimeras tecnológicas, das ordens mundiais alternativas, dos universos paralelos, damos por nós nus como viemos ao mundo, em toda a nossa humanidade complexa e crua. Junte-se a isto a filosofia e a espiritualidade de Philip K. Dick e está o caldo magnificamente entornado: ficamos agarrados a cada palavra, de olhos esbugalhados como crianças que compreendem finalmente algo que as torna mais adultas, crescemos e expandimos a mente. No caso deste livro, a espiritualidade está sobretudo traduzida no Tao e no I Ching, que várias personagens usam como oráculo para determinar o passo seguinte. E há ainda o livro O Gafanhoto Será Um Fardo e o seu autor, o homem do castelo alto, mas falar sobre o significado destes dois elementos da trama seria um spoiler cruel e gratuito.
De facto, avançar com quaisquer pormenores além de uma brevíssima sinopse da acção seria um acto de crueldade. Cada personagem merece ser descoberta sem apresentações, sejam espiões, vendedores de antiguidades ou instrutoras de judo. Cada curva da estrada sinuosa que é este romance merece ser trilhada sem mapa, sem indicações e sinalética. Daí talvez não ser má ideia deixar o completíssimo ensaio de Nuno Rogeiro para o final do romance, depois de ler o romance com a mente virgem. É uma leitura extremamente informativa e interessante, e revela uma genuína admiração pelo autor, mas poderá “estragar” algumas surpresas. Mesmo conhecendo a obra de Philip K. Dick, sabe-se um pouco o que esperar, mas na realidade nunca se sabe ao certo. Sabemos que será profundo e marcante, sabemos que vai levar a nossa mente por territórios estranhos e simultaneamente familiares, que nos fará reflectir e que nos viciará como uma droga, mas nunca sabemos exatamente como o fará. E não podemos privar-nos desse prazer intenso. Mas tudo depende do leitor, claro, a ele cabe decidir como quer ler o seu livro e isto não passa de uma sugestão dirigida a quem queira entrar neste mundo sem pára-quedas e de lousa limpa para o autor nela inscrever a sua marca.
2 Commentários
Onde compro o livro com essa capa?? ♥ ♥
Olá Reinaldo. Através da editora Saída de Emergência.