Astrágalo: osso que articula a tíbia com o calcânio (osso do calcanhar). Podemos começar assim, por definir o sentido da palavra que intitula esta obra de Albertine Sarrazin, agora publicada em Portugal pela Antígona – embora originalmente publicada em França no ano de 1965.
Tudo começa com a fuga da prisão de Anne, protagonista da história, durante a qual parte uma pata. É isso mesmo, pata, expressão premonitória do estilo e natureza da retórica, utilizada ao longo da narrativa pela autora sempre que alude à mobilidade condicionada pela fractura e longa recuperação de um dos seus membros inferiores. A partir deste episódio sucedem-se relatos de fugas, esconderijos, angustias, compromissos e lealdades, uns mais prováveis que outros mas, sempre, de procura de liberdade sentido. Não a liberdade sem grades, mas fundamentalmente a liberdade de sentir, de querer para além do confortável e expectável, do pertencer a um lugar e a alguém. A procura de uma liberdade aprisionada pela ânsia de viver que impede Anne de valorizar a proteção de Ginette e Eddie, que asseguraram os mais elementares aspetos da sua existência, acolhendo-a e alimentando-a quando estava fisicamente dependente, ou de Nini e Pierre, sem esquecer Annie, todos declinados por lhe toldarem a capacidade de reflectir e decidir, comprometendo-a em relações que, não tendo procurado, não queria manter. Abomina a ânsia obediente, a cumplicidade, a paga e a condescendência de quem a recebe e apoia. Sente falta do sonho, do mistério, da aventura, do abismo, até da dor e do apaziguamento que se segue à sua superação.
Ainda assim, Anne envolve-se e deixa-se aprisionar por Julien, seu salvador, também ele delinquente no comportamento e na capacidade de a deixar suspensa, aprisionada pela incerteza e pelo vazio. Uma relação e uma entrega contraditórias, especialmente se atendermos à facilidade com que Anne se liga e desliga de outras personagens com as quais se cruza durante o período em que, em fuga, recebe ajuda. “Paparoca, litania, neura e nódoas“, assim sente a vida tranquila, segura e convencional fora de grades. A falta de desafiar secretamente os limites, fá-la sentir-se aprisionada e paralisada pela nova liberdade.
Se começássemos por apresentar pré-requisitos para se desfrutar da leitura de “O Astrágalo” (Antígona, 2015), bastariam dois: estar disponível para desconstruir (a realidade arrumadinha e formatada tal como a maioria de nós a concebe) e ser capaz de aceitar (o imprevisto, o impensável, e saboreá-lo). Para Albertine Sarrazin – e para Patti Smith que, no Prefácio, a transforma em sua “irmã virtual” -, devemos envergonharmo-nos da letargia das nossas conquistas e saborear o risco e o imprevisto.
Sedução, arrojo e despojo. Temperos que apimentam a leitura de uma obra endeusada por todos aqueles que encaram com inconformismo, radical ou moderado, o amanhã e o hoje. O subversivo, o contestatário, cada um é, a seu modo, um inconformado com a sociedade de hoje. A sua recusa poderá incidir sobre os costumes, os estilos e as máximas admitidas em geral pelo que é dominante ou consensual. Queixa-se do imobilismo, rejeita ou, pelo menos, relativiza a estabilidade. Contraria a lentidão das transformações, precisa de movimento, de descontinuidades e de ruturas. É essa a linha de confronto com a realidade que Albertine Sarrazin nos desperta, uma linha de movimento com imprecações e chicotadas psicológicas, protagonista de um movimento insubmisso, inconformado, sôfrego e demolidor do convencional: “Amanhã…que importa o amanhã? O amanhã ainda não nasceu“; “A minha liberdade tolhe-me os movimentos. Queria viver numa prisão de que soubesse trancar e arrombar a porta, por um pouco mais, um pouco mais de tempo…“; “Dou-me conta da dolorosa consistência de amar e estou louca de sofrimento …Obrigada, Julien, por teres sabido fazer-me tanto mal.”
Alberine Sarrazin foi uma criança precoce, notável em áreas como o latim, a literatura e a música. A falta de protecção e a exposição a uma série de acontecimentos dolorosos moldaram o seu percurso. Nascida na Argélia, viveu e morreu em Paris. Abandonada, adoptada, maltratada, novamente abandonada, humilhada, presa e, até na morte, negligenciada. Ainda assim, amada, investida e intensa. Nas palavras de Patti Smith “saiu do mundo amada, mas também como entrara nele – numa nuvem de abandono.”
Albertine Sardine, a inspiradora. Impenetrável na lassidão dos movimentos descritos e outros tantos subentendidos, na persistência de uma forma de estar sedutora, intensa e contagiante. Não cometíamos grande sacrilégio se retomássemos outro dos significados possíveis da palavra Astrágalo: ornato (ou adorno) em torno da boca de uma peça de artilharia. Nada mais oportuno que isto: Anne, rochedo de vontades, delicada e inspiradora. Entre muitos possíveis, um dos ganhos deste livro é transformar a maneira de pensar a vida, a liberdade e o convencional. Uma dádiva ampliada pela efemeridade da vida da autora (1937-1967).
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