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“O amor natural” | Carlos Drummond de Andrade

Por David Pimenta · Em 16/02/2016

«Você meu mundo meu relógio de não marcar horas; de esquecê-las. Você meu andar meu ar meu comer meu descomer. Minha paz de espadas acesas.»

 

Tal como Carlos Drummond de Andrade afirmou, quando se fala sobre o amor fala-se mais de um sentimento do que “uma práxis, de uma experiência”. Mas o amor é o envolvimento entre dois corpos, é a satisfação física comum. Um momento recheado de fraquezas, para o homem e para a mulher, mas enaltecido “numa linguagem poética e com dignidade”.

Não há um momento certo para começar a leitura de “O amor natural” (Companhia das Letras, 2016).: a lírica poética destruirá qualquer momento de reflexão e, na maioria dos casos, irá promover o acompanhamento obsessivo de algumas personagens. Os sentimentos inebriantes, passados pelas palavras de Drummond de Andrade, conseguem interromper todas as leituras e só há algo a ser feito: chegar ao fim deste amor tão natural e tão carnal.

Os poemas eróticos de Drummond de Andrade, publicados pela primeira vez em 1992, estão novamente em todas as livrarias portuguesas, uma novidade de uma editora recém-chegada ao mercado português: a Companhia das Letras, que teve em “O Irmão Alemão”, lançado há cerca de um ano atrás, o seu grande trunfo. A escolha não podia ter sido melhor e mais gratificante para os leitores: um corpo nu, ilustrado através de palavras poderosas, é uma força da Natureza; os confins do prazer, num terreno desbravado por mãos ou línguas, são uma verdadeira descoberta para o ser humano.

O prazer atingido no corpo de uma mulher começa no primeiro poema, “Amor – pois que é a palavra essencial”. O amor guia a exploração dos territórios carnais, escreve Drummond com «O corpo noutro corpo entrelaçado/ fundido, dissolvido, volta à origem/ dos seres, que Platão, viu contemplados/ é um, perfeito em dois; são dois em um», em que as sensações durante o acto contêm mais força do que os sentimentos («E num sofrer de gozo entre palavras,/ menos que isto, sons, arquejos, ais»). Não há fraquezas nos poemas cheios de prazer de Drummond e todas as sensações sobrepõem-se às reflexões.

Corpos, bocas, pénis, vaginas e tantos outros membros, ilustrados pelas palavras de Drummond de Andrade, são derramadas nestas páginas e não é de admirar que tenha existido um receio, por parte do poeta, em publicar estes poemas. Sendo um livro póstumo, a responsabilidade e a criatividade ficam para quem o lê. Velho safado, assim se pode dizer, utilizado o vocabulário brasileiro e sem o tom pejorativo, à medida que se vai avançando neste amor natural («O que se passa na cama/ é segredo de quem ama)», «Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas/ detém a mão ansiosa: Devagar»).

O amor natural, Companhia das Letras, Carlos Drummond de Andrade, Deus Me LivroMas em territórios sexuais, nem tudo é oferecido de mão beijada. Obter o que se deseja faz arder o corpo. Como em “A moça mostrava a coxa”, momento em que ela mostrava tudo exceto aquilo «que se entreabre, quadrifólio/ e encerra o gozo mais lato». Mas tudo acaba por ser consumido, tudo o que se deseja urgentemente, e são as sensações de consumação e satisfação que Drummond transmite nos seus poemas («O chão é cama para o amor urgente,/ amor que não espera ir para a cama»). Ao longo de toda a obra, o corpo feminino é o território sagrado, graças ao enaltecimento da bunda e à liberdade para consumar outros desejos («Quando desejos outros é que falam/ e o rigor do apetite mais se aguça,/ despetalam-se as pétalas do ânus»). Entre a vénia ao corpo da mulher, o erotismo e o amor, as palavras são cuidadosamente colocadas para se fazer reverência a um dos comportamentos mais animalescos entre um homem e a mulher: o sexo.

Em “O amor natural”, o erotismo é uma arte e o conhecimento sobre o corpo é poder. Em pleno século XXI, tempo onde a exploração de mau gosto da pornografia ganham cada vez mais força, é uma bênção obter palavras tão bem cuidadas sobre amor e sexo. Passaram-se vinte e quatro anos sobre a primeira edição deste livro, mas a importância do erotismo mantém-se. Que venham outras obras, de escritores tão talentosos como Drummond, mostrar que escrever sobre sexo também é uma arte e não uma simples combinação de frases pornográficas e viciantes, destinada a leitores sem tempo para se dedicarem à reflexão.

Carlos Drummond de AndradeCompanhia das LetrasO amor natural

David Pimenta

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1 Commentário

  • Luciana Ferreira comentou: 08/04/2018 at 23:12

    Excelente análise, David Pimenta. Vim parar em seu artigo pesquisando sobre essa face de Drummond, que se mostra surpreendente e bela para mim. Aprecio a poeta portuguesa Maria Teresa Horta, que tem uma “pegada” erótica bem elegante também. Gratidão por teu comentário.

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