«A vida, nos dias malditos, contraria-nos sempre”» lembra Raquel Ochoa em Mar Humano (Marcador, 2014). A Viajante que conta Histórias, vencedora do prémio Agustina Bessa Luís, oferece-nos uma escrita confiante capaz de uma crítica social mordaz de um país preso no tempo de um Estado Novo pouco dado a liberdades.
Quando começamos a ler vamos abrindo a porta do Portugal “fechado”, espreitamos os meandros da censura, os recantos de um país “aprisionado” a conceitos e preconceitos. De repente somos O Leitor que Faz Parte da História, mais um do grupo de amigos que partilha as venturas e desventuras com um casal que não encontra o momento certo para se amar.
Os amigos de Ema e Samuel, os personagens centrais desta história, fazem-nos lembrar alguém e, a certa altura, questionar se teremos mudado de época ou quantos anos terão passado. As suas tertúlias sem preconceitos, enevoadas e regadas com álcool, o debate sobre as questões da ciência, da humanidade, dos avanços tecnológicos, as amarguras do amadurecimento, fazem-nos sentir muito próximos destes personagens. Como se este romance de época pudesse, em algumas passagens, ser de uma contemporaneidade assustadora.
Entre a impossibilidade de crescer num país e numa carreira, as incertezas acerca do que o amanhã nos reserva e o desejo de soltar amarras e partir à descoberta de outras paragens, percebemos que há algumas coisas que não mudam com as épocas, as viragens de século ou os regimes políticos.
O contraste entre a escrita ritmada da autora e os avanços e recuos constantes da história dos personagens principais pode tirar do sério o leitor menos romântico, tantos são os desencontros deste par. Mas talvez o amor também seja feito desta matéria, pelo menos quando nos dizem que «todo o amor só o é se houver a possibilidade da sua impossibilidade.» Ema e Samuel passam uma vida inteira a cair nas armadilhas do destino e acabam por perceber que talvez uma vida não seja suficiente para nos encontrarmos – a nós e ao outro com quem a queremos partilhar. Talvez seja preciso outro tanto tempo.
Num final surpreendente e surreal, a autora leva-nos a olhar para o presente como se fosse o passado e falar do futuro como se fosse o(um) presente. Sim, “Mar Humano” pode ser um romance de época(s).
2 Commentários
Que “Deus” nunca nos livre de tão boa escrita!
eu estive a ler o livro e achei-o interessante , mas ficou na duvida o porque deste ter o titulo de mar humano , será que me pode ajudar ?