Esta é uma novela de Simone de Beauvoir escrita em 1966/67, que a autora decidiu não publicar na altura – apenas foi editada nos anos 90 em França e só agora em Portugal, pela editora Quetzal.
A história de “Mal-entendido em Moscovo” (Quetzal Editores, 2015) é completamente datada e o que conta é muito simples à superfície, mas colocando questões que, a um nível mais profundo, lhe confere uma densidade intemporal. E as questões que levanta são muitas, tais como o problema do envelhecimento, das relações do casal, das relações com os filhos já adultos, a preferência dos pais por algum dos filhos – e que raramente coincide em ambos -, as contradições ideológicas.
Anos 60. Plena Guerra Fria. Um mundo afinal muito mais seguro e estável do que o nosso hoje. Nicole e André, casal francês, chegados à casa dos sessenta, burgueses e intelectuais de esquerda, reformados do ensino, naturalmente partidários das sociedades socialistas e da soviética em particular, viajam para Moscovo para visitar Macha que aí vive, a filha do primeiro casamento de André.
A estada em Moscovo acaba por ser decepcionante para Nicole e abre uma fissura inconfessável nas convicções políticas e no relacionamento com o marido através de coisas aparentemente mínimas e pouco perceptíveis do lado de fora. Nada é muito agradável ou interessante afinal, os lugares que previam visitar carecem da autorização prévia imprescindível, comunicada subitamente e sem explicação por parte das autoridades, o peso de uma burocracia absurda limitadora da liberdade de movimentos vai tornando a viagem pesada e sentida por Nicole como demasiado longa. Nicole tem saudades de Paris, de sua casa, da sua vida, da intimidade com o marido sem a presença constante da filha deste. Apesar de Macha ser amável e atenta a ambos, a sua energia e boa disposição acentua a sua sensação de envelhecimento.
E é horrível envelhecer.
«Diziam-lhe muitas vezes isso: tem um ar jovem, é jovem. Cumprimento ambíguo que anuncia penosos amanhãs. Manter a vitalidade, a alegria, a presença de espírito, é manter-se jovem. Logo a quota-parte da velhice é a rotina, a morosidade, a preguiça. Dizem: a velhice não existe, não é nada; ou então, é muito bonita, muito comovente; mas quando lá chegam, mascaram-na pudicamente com palavrinhas mansas. Macha disse: são jovens, mas dera o braço a Nicole. No fundo, era por sua causa que Nicole, desde que chegara, sentia a idade pesar-lhe tanto. Apercebera-se que a imagem que tinha de si própria ficara nos quarenta anos.» (pág. 41)
E aqui surge a viagem como elemento de ruptura, que tanto pode ser benéfica e refrescante como pode tornar evidentes fissuras dolorosas semi-inconscientes.
É durante a viagem que a triste constatação da velhice e do tempo que resta e de como utilizá-lo surge em pleno, assim como o rumo do casal enquanto unidade ou como dualidade difícil de harmonizar.
A burguesa parisiense, a mulher mimada com uma vida confortável, que mesmo aos 60 anos no fim de tantos anos de casamento não suporta que o marido não lhe dê atenção exclusiva, contradiz o feminismo que pugna pela mulher antecipada e independente, notoriamente o ambiente mental das personagens desta novela e da autora da obra.
Simone de Beauvoir, feminista que teve uma vida libertária, autora de “O Segundo Sexo”, eterna companheira de Sartre – mas com uma relação aberta a outras relações e outras experiências -, escreve esta novela certamente inspirada nas viagens que fez com Sartre a Moscovo, quando ele ia visitar uma amiga russa, Léna Zonina.
Ao ler este livro vem imediatamente à memória, para qualquer cinéfilo, o filme de Roberto Rossellini, Viaggio in Italia (1953), com Ingrid Bergman e Georges Sanders, um casal de meia-idade cujo casamento implode durante uma viagem a Itália trazendo à luz do dia todas as fragilidades incomunicação e afastamento do casal, havendo no final a reconciliação simbolicamente religiosa.
Nesta novela o mal-entendido, aparentemente tão banal, levanta simultaneamente o problema e a solução para este casal, afinal tão bem sucedido no fosso que é quase sempre a incompatibilidade entre um homem e uma mulher.
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