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Diderot, Tinta da China, Jacques o Fatalista e o Seu Amo
Crítica, Mil Folhas 3

“Jacques, o Fatalista, e o Seu Amo” | Denis Diderot

Por Carlos Eugénio Augusto · Em 17/09/2014

Ao longo dos últimos dois séculos, foram vários os nomes que ousaram analisar “Jacques o Fatalista e o seu Amo”, uma das mais marcantes obras do século XVIII. Se o alemão Friedrich Schlegel, homem de letras que fez a ponte entre os séculos XVIII e XIX, salientou o brilhantismo da criação da personagem de um criado imbecil que usa a estupidez como uma forma de crítica mordaz, o contemporâneo Milan Kundera chega mesmo a comparar este livro a clássicos como “D. Quixote” ou “Ulisses”.

Esta última observação, como facilmente pode verificar-se ao folhear a nova edição de “Jacques, o Fatalista, e o Seu Amo” (Tinta da China, 2014), com prefácio de Eduardo Prado Coelho, não tem a ver com a elevada erudição do texto, mas sim com a mestria da natureza do mesmo que se serve do riso como uma forma de tocar o leitor, de contar uma estória, de desafiar os limites da falência humana.

Jacques o Fatalista, Tinta da China, DiderotClaramente inspirado no romance “A Vida e Opiniões de Tristram Shandy”, de Laurence Sterne, e publicado originalmente em nove volumes – sendo os dois primeiros datados de 1759 -, “Jacques O Fatalista e o seu Amo” é uma maravilhosa peça de características anti-romance, uma forma de provocação feita por Diderot ao leitor através de uma sucessão de ideias, não necessariamente ordenadas cronologicamente, que resultam de um diálogo entre Jacques e o seu mordomo ao longo de um percurso cujo local de partida e destino afiguram-se desconhecidos e desnecessários.

Jacques o Fatalista e o seu Amo, Diderot, Tinta da ChinaMais que uma bússola, ao leitor é recomendada uma grande capacidade de encaixe literário – aqui entendido como uma mescla de humor -, seja ele corrosivo ou naïve, discussões filosóficas, aventuras amorosas, exposições de caráter religioso, médico, financeiro ou jurista. Tudo temperado com elevadas doses de senso-comum, nem que o tema central seja um palavrão ou a sua pertinência conceptual através de argumentos cuja valia encontra sentido tanto há dois séculos atrás como na atualidade.

Nas entrelinhas desta obra Diderot consegue traçar a fotografia da França pré-revolução, das suas relações sociais e dos conflitos que dai emergem. Tudo é caricaturado e a tendência natural é o exagero, ainda que o enquadramento seja bipolar e as visões entre mestre e amo se complementem. A liberdade é um lugar-comum na escrita de Diderot e não se espantem ao ler – e entender -, por exemplo, a necessidade óbvia que os filósofos sentem de ofender o próximo.

À imagem de outras obras de caráter discursivo, Diderot pensou este “Jacques o Fatalista e o seu Amo” como uma paródia (ou talvez não) que se estenderia por um período largo, existindo muito mais neste livro que a ridicularização e o conceito de paradoxo.

Diderot tinha por propósito fazer o leitor pensar, levar-nos a entender que o mundo pode estar organizado de uma forma que transcende os conceitos comuns de ordem e caos. “Jacques o Fatalista e o seu Amo” é um alerta face à modernidade que se aproximava, face às mudanças que o final do século XVIII poderia proporcionar.

A complexidade deste livro pode mesmo levar a equacionar, tal como já fora referido, o seu estatuto de romance. De facto, podemos mesmo considerá-lo uma narrativa parodiada ou ainda uma novela conceptual em forma de desafio. O extremo fatalismo de Jacques é o que faz funcionar um livro que se assume como um clássico sem espinhas, cujo todo assume a estrutura de um puzzle que deriva em um todo fragmentado mas incrivelmente (in)coerente, que o torna um documento único.

DiderotJacques o FatalistaTinta da China

Carlos Eugénio Augusto

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3 Commentários

  • Pastor Lucas dos Santos Pinto comentou: 03/07/2018 at 23:58

    Ao longo dos últimos dois séculos, foram vários os nomes que ousaram analisar “Jacques o Fatalista e o seu Amo”, uma das mais marcantes obras do século XVIII. Se o alemão Friedrich Schlegel, homem de letras que fez a ponte entre os séculos XVIII e XIX, salientou o brilhantismo da criação da personagem de um criado imbecil que usa a estupidez como uma forma de crítica mordaz, o contemporâneo Milan Kundera chega mesmo a comparar este livro a clássicos como “D. Quixote” ou “Ulisses”.

    Esta última observação, como facilmente pode verificar-se ao folhear a nova edição de “Jacques, o Fatalista, e o Seu Amo” (Tinta da China, 2014), com prefácio de Eduardo Prado Coelho, não tem a ver com a elevada erudição do texto, mas sim com a mestria da natureza do mesmo que se serve do riso como uma forma de tocar o leitor, de contar uma estória, de desafiar os limites da falência humana.

    Jacques o Fatalista, Tinta da China, DiderotClaramente inspirado no romance “A Vida e Opiniões de Tristram Shandy”, de Laurence Sterne, e publicado originalmente em nove volumes – sendo os dois primeiros datados de 1759 -, “Jacques O Fatalista e o seu Amo” é uma maravilhosa peça de características anti-romance, uma forma de provocação feita por Diderot ao leitor através de uma sucessão de ideias, não necessariamente ordenadas cronologicamente, que resultam de um diálogo entre Jacques e o seu mordomo ao longo de um percurso cujo local de partida e destino afiguram-se desconhecidos e desnecessários.

    Jacques o Fatalista e o seu Amo, Diderot, Tinta da ChinaMais que uma bússola, ao leitor é recomendada uma grande capacidade de encaixe literário – aqui entendido como uma mescla de humor -, seja ele corrosivo ou naïve, discussões filosóficas, aventuras amorosas, exposições de caráter religioso, médico, financeiro ou jurista. Tudo temperado com elevadas doses de senso-comum, nem que o tema central seja um palavrão ou a sua pertinência conceptual através de argumentos cuja valia encontra sentido tanto há dois séculos atrás como na atualidade.

    Nas entrelinhas desta obra Diderot consegue traçar a fotografia da França pré-revolução, das suas relações sociais e dos conflitos que dai emergem. Tudo é caricaturado e a tendência natural é o exagero, ainda que o enquadramento seja bipolar e as visões entre mestre e amo se complementem. A liberdade é um lugar-comum na escrita de Diderot e não se espantem ao ler – e entender -, por exemplo, a necessidade óbvia que os filósofos sentem de ofender o próximo.

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