Nascido em Paris no ano de 1951, Pierre Lemaitre deu aulas de literatura francesa e americana durante vários anos, até se ter dedicado por inteiro à escrita e ao teatro. Uma decisão muito acertada, a julgar pelo reconhecimento que lhe foi dado. Os cinco thrillers que escreveu foram premiados pela crítica e celebrados pelos leitores, como é o caso deste “Irène” (Clube do Autor, 2015), que levou para casa os prémios Dagger, Prix du Premier Roman Policier de Cognac, Prix du Meilleur Polar Francophone e o Romance Policial Europeu do Ano.
O livro dá início à trilogia que tem, como inspiração e protagonista, o comandante Camille Verhoeven, “…já homem aos dezasseis anos e como que para sempre incompleto.” Esta “miniatura de homem”, como ele próprio se considera muitas vezes, foi subindo a pulso na polícia, e nem a baixa estatura foi obstáculo a que o seu intelecto, perspicácia e sentido de liderança fizessem dele um dos homens fortes no combate ao crime. Vive porém na sombra do fantasma da mãe, de quem herdou o gosto pelo desenho dos tempos em que passou no atelier desta, e que morreu vítima de um longo e penoso cancro do pulmão.
Camille leva uma vida muito tranquila com Irène, que aguarda o primeiro filho do casal. Porém, esta felicidade vê-se em risco quando um crime brutal se torna público, onde salta desde logo à vista a ausência de vida que os mais calejados procuram e uma cabeça de mulher pregada à parede. Um cenário que parece evocar o quadro de Goya, aquele em que Saturno devora os próprios filhos. Há “dedos arrancados, sangue coagulado a rodos, tudo no meio de um cheiro a excrementos, a sangue seco e a entranhas extirpadas.” Não é, portanto, um policial para meninos – ou para estômagos mais sensíveis.
O acontecimento lança Camille no caso mais difícil da sua carreira: um assassino em série que, em cada um dos crimes, trata de prestar homenagem a um romance policial clássico, razão pela qual a imprensa lhe atribui a alcunha de O Romancista. Suspeitos não faltam, como um livreiro e um professor universitário, ambos especialistas naquele género literário. Para Camille, porém – e por razões que ninguém conhece -, o caso torna-se pessoal, e de um aceso duelo intelectual e uma corrida vertiginosa contra o tempo apenas um deles poderá sobreviver.
Para além de Camille, “Irène” está recheado de personagens muito bem desenhadas: o Comissário Le Guen, “…um latagão que, depois de fazer regime atrás de regime vinte anos a fio sem nunca perder um grama, adquirira um fatalismo vagamente exausto que se lhe lia no rosto e em toda a sua pessoa.”; Louis, “…louro, com uma risca ao lado e essa mecha um tanto rebelde que se puxa para trás com um movimento da cabeça, ou um gesto negligente da mão, e que faz parte do património genético dos filhos das classes privilegiadas”; Armand, ou mesmo Jean-Claude Marenal, que tinha “um dom de sedução do qual abusava como abusava de tudo, das noites, das mulheres, do corpo. O género de homem que não se poupa.”
Com muitos arrepios pelo caminho, “Irène” é um thriller policial marcado pela originalidade e pela inteligência, e que acaba por ser, também, uma homenagem ao género através da revisitação de alguns dos seus clássicos. E que tem reservado um final verdadeiramente assombroso, tornando obrigatória a leitura dos restantes dois livros da trilogia.
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