Portugal não nasceu já com língua, identidade e território definidos. Teve de ser criado, de forma demorada e, por vezes, violenta. Este é um livro sobre os primeiros tempos dessa história imensa e nunca terminada.
“Identificação de um País” (Temas e Debates, 2015 – reedição) tem um tema muito caro a todos os Portugueses. Adoramos falar sobre o que somos e não somos. Há mesmo quem diga que vivemos obcecados pela nossa identidade, mas existem dúvidas se tal obsessão será apenas característica portuguesa ou, pelo contrário, muito humana.
Seja como for, se a História é a base dessa nossa identidade, convém perceber quão sujeita está a mitificações e simplificações abusivas. Ao leitor que se atreva a percorrer esta Identificação de um País será dada uma ferramenta poderosíssima para combater todas essas simplificações.
Parece ser esse o objectivo do autor. Depois de décadas de deturpação histórica com o intuito de criar um Portugal à imagem da ideologia do Estado Novo, havia, em 1985 (data da primeira edição desta obra), uma necessidade de «conhecer o passado efectivo, e não o imaginado», como lembra José Mattoso no prefácio desta nova edição.
Lembremo-nos que José Mattoso será dos mais habilitados a falar-nos desse passado efectivo: é um dos nossos maiores historiadores, laureado com o Prémio Pessoa logo na sua primeira edição, em 1987, professor catedrático de História e coordenador de uma gigantesca História de Portugal publicada nos anos 90 — além de autor de vários livros de História, em especial sobre o período medieval. Se a História é a base da identidade nacional, José Mattoso é um dos grandes escritores da nossa identidade.
Este livro foi escrito explicitamente para quem «queria perceber como é que Portugal tinha surgido, como subsistiu, como se foi organizando, como resolvera (ou não) os seus principais problemas. Queria saber aquilo que, ao longo dos séculos, o foi caracterizando como igual e como diferente dos países do mundo inteiro.»
Para responder a todas estas perguntas, José Mattoso mergulha nas origens e procura as bases da identidade de Portugal no tempo a que dedicou a sua vida de investigador — a Idade Média.
A obra está dividida em duas partes que, na edição original, constituíam volumes separados. Há aqui uma estrutura muito bem pensada: a primeira parte (“Oposição”) mostra-nos todos os elementos diversos presentes no território do país em formação — uma espécie de descrição pormenorizada de todos os materiais com que se construiu a nossa identidade nacional, como se estivéssemos perante a mesa do artista antes de este iniciar o trabalho.
São materiais muito diversos e muitas vezes em oposição — o país construiu-se entre montanha e planície, campo e cidade, Cristandade e Islão; entre senhores e dependentes — entre, por fim, o Norte senhorial e o Sul concelhio. Uma das linhas de oposição que nos aparece com especial clareza é esta divisão (sem uma fronteira precisa) entre Norte e Sul — e, ainda, entre Interior e Litoral.
É, sem dúvida, dos aspectos mais interessantes desta obra: conseguimos ver as origens antiquíssimas das distinções que sentimos ainda hoje entre as várias regiões do país — basta pensar nos topónimos (e do sabor bem diferente que têm no Minho ou no Algarve) ou ainda na língua portuguesa, mais galega a norte e mais moçárabe a sul. Na origem, as diferenças eram ainda mais profundas: desde a organização económica às influências externas, o Norte e o Sul apresentavam-se como territórios bem diferenciados.
Desta diversidade, como foi possível construir uma identidade nacional? É exactamente essa a pergunta central da segunda parte da obra – “Composição” -, onde o autor descreve como, com base naqueles materiais opostos, este novo país ganha forma e nome, como se um artista o tivesse criado na tela que é o nosso território — tecendo-o com ligações cada vez mais profundas entre as várias regiões e reforçando-o através da homogeneidade criada, entre outras forças, pela Coroa e pelas cidades.
Este é um ensaio escrito por um historiador profissional; é de leitura obrigatória nalgumas disciplinas de História a nível universitário. Não espere o leitor leveza ou facilidade. O olhar do autor é, simultaneamente, profundo e abrangente — vemos o país a surgir das ligações comerciais entre as várias cidades, mas também da história particular das famílias nobres. O autor socorre-se da economia, da geografia, da etnografia, da antropologia, da linguística e de tudo o que preciso for para desenhar o rosto do país na sua infância.
É um livro para todos os que se atrevem a ir além dos lugares comuns e das três ou quatro frases com que descrevemos a História do nosso país. A quem se atrever, estas tremendas 900 páginas irão mostrar como surgiu Portugal — o que não é coisa pouca. Afinal, é a identificação do nosso país que nos permite usar esta primeira pessoa do plural sem que tenhamos qualquer dificuldade em saber de quem estamos a falar: de nós, Portugueses.
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