Do ponto de vista da subjectividade, o estatuto e a condição de espectador é, não apenas hoje, mas desde há décadas, uma questão fulcral. Marie-José Mondzain ocupa-se deles em “Homo Spectator” (Orfeu Negro, 2015), um livro denso, complexo, erudito e problematizante. Acabamos com tantas perguntas ou mais inquietações do que quando iniciámos a leitura, mas certamente com muito mais elementos e reflexões a partir dos quais nos podemos relacionar com estas matérias.
Quando falamos de espectador, há questões que logo que nascem se desdobram: o que é ver? O que é uma imagem? Questões que surgem porque, por um lado e como nos diz a autora, existe uma diferença (mesmo que muitas vezes ignorada de forma discreta e para conforto discursivo, acrescentamos nós) entre imagem e visão. Por outro lado, porque toda a imagem se inscreve numa dinâmica enigmática: se a sua visibilidade a traz à evidência, na realidade ela resulta sempre de uma distância e implica uma ausência. Por isso a evidência é claramente aparente e, também por isso, as questões da crença, da fé ou da confiança nas imagens se tornam fulcrais.
Para trazer o espectador e a imagem à nossa atenção e reflexão, Mondzain faz-nos recuar aos primeiros traços e gestos das inscrições paleolíticas – lugar e tempo da génese do espectador e do espectáculo –, daí partindo para encetar uma espécie de história do sujeito e do imaginário que nos conduzirá ao tempo presente. Pelo meio, a antiguidade grega e a tradição judaico-cristã são alguns dos pontos de ancoragem e vínculo. No mesmo movimento, convoca o idealismo platónico ou o pathos aristotélico, mas remete igualmente para pensadores e artistas mais próximos de nós, como Benjamin, Debord ou Godard. Momentos históricos como o Iluminismo ou as grandes guerras são igualmente objecto de reflexão. De igual modo, a iconoclastia, a iconofobia, a iconofilia ou a fobocracia são conceitos dissecados e operacionalizados.
Ao mesmo tempo, partindo das imagens e do que política, social, artística e subjectivamente fazemos com elas, um pensamento dual abre-se e expande-se em vínculos e direcções múltiplas: dor e prazer, gozo e medo, terror e segurança, imanência e transcendência, enigma e mistério, crença e fé. Ou ainda: autor e autoridade, legibilidade e inteligibilidade, manual e técnico, aura e diáfano, sinestesia e metafísica.
É um pensamento denso e constelado, fragmentado, mas imbricado também. Um pensamento com um teor de exigência que, por vezes, parece resvalar para o tom apocalíptico – em maior medida quando se aproxima do imaginário presente e das suas figuras e forças. Quando fala de indústrias mundializadas da visão, de monopólios da visibilidade, do capitalismo da imagem, do desabamento da vitalidade imaginária, da apneia visual, da violência dos fluxos visuais, do esmagamento do sujeito, da adição visual, do mercado da cultura, da estandardização da visão ou dos maus-tratos do espectador, evocando as poderosas memórias de Babel e de Babilónia, poderíamos ser levados a sentir que o nosso é um tempo catastrófico, no qual o sujeito foi despojado da sua liberdade e da sua responsabilidade, incapaz de se posicionar autonomamente perante a torrente de imagens que o circundam ou submergem. E é aqui que, parece-nos, qualquer ilação se pode tornar mais frágil, pois se é certo que, como diz a autora, vivemos num “mundo sem fora-de-campo”, que “o invisível tende a desaparecer e nunca antes houve desaparição mais visível” e que nos é proposta “uma semiótica emocional universalmente decifrável”, como se cada um carecesse de ferramentas intelectuais ou judicativas adequadas ao tempo em que vive e comunica, a verdade é que a possibilidade de resistência, de desvio, de inauguração ou de alternativa não se exauriu e, pelo contrário, em certo sentido até se expandiu.
Falar como a autora de uma iconocracia – seja das imagens do poder, seja do poder das imagens – pode ter uma dimensão crítica e até didáctica. E assinalar as patologias da imagem e a superabundância dos mimetismos deve ser visto como um gesto de alerta ou, pelo menos, de cautela. Mas, da nossa parte, parece-nos que entre a vida das imagens e as imagens da vida – no fundo, aquilo a que se resume a nossa condição de espectadores – que o nosso tempo nos oferece existe uma pluralidade de relações, de forças, de trocas e de figuras que, de um ponto de vista semiótico, artístico ou cultural dificilmente se deixa aprisionar numa lógica única de dominação e disseminação. Entre o antropológico e o tecnológico, entre o secular e o sagrado, entre o espectáculo e a nostalgia, há muitos lugares que o sujeito – espectador e autor – pode ocupar. Ora, a enorme virtude deste livro é mostrar-nos que esses lugares são umas vezes mutáveis e transitórios, outras inseguros e arriscados, seja política, teológica, semiótica ou filosoficamente. Daí a pertinência da sua proposta e a necessidade da nossa atenção, pois são lugares valiosos.
2 Commentários
Por gentileza, gostaria de saber como teve acesso ao livro. Ele pode ser adquirido em alguma livraria do Brasil? Não encontrei online. Obrigado
Boa noite. Visite a editora Orfeu Negro, penso que fazem envios para fora de Portugal. Cumprimentos.