O volume IV da História do Corpo (Círculo de Leitores), à luz dos acontecimentos dos últimos dias, tem algo de estranhamente premonitório: “Embora derive de uma palavra árabe que designa o matadouro, o termo “massacre”, na língua francesa, diz inicialmente respeito à montaria. Significa dar morte simultânea a um conjunto de vítimas sem defesa, realizada por grupos de caçadores respeitadores de um ritual de carácter dionisíaco.”
Não estamos, porém, em 2015, mas no século XIX francês que, curiosamente vai atenuar a prática do massacre. O que não significa, longe disso, um cessar da vertigem sanguinária. Esse atenuamento deve-se, entre outros factores, à evolução das técnicas de manutenção da ordem, que fazem com que o massacre seja trocado por um regime de eficácia extrema do terror, com matanças específicas no lugar das anónimas.
É o tempo das barricadas, formas privilegiadas de violência colectiva, mas também dos atentados. Além da barricada, novos espaços de morticínio surgem um pouco por todo o lado: cemitérios, pedreiras, terrenos vagos. Tempos de uma violência tão bárbara e chocante que os historiadores, praticamente na sua totalidade – na opinião dos organizadores desta colecção -, recuaram perante essa obscenidade.
No último terço do século XVIII, o tratamento penal do corpo começa a ser criticado, passando as execuções a ser menos frequentes. Ainda assim, o suplício é vivido nas ruas. “A visibilidade imediata da dor acentua a exemplaridade e contribui para a prevenção penal.” Bem como a cicatriz penal, com que se marcam os condenados para tornar visíveis, aos outros, os crimes cometidos.
Será a 25 de Abril de 1792, com o aparecimento da guilhotina, que será modificado radicalmente o suplício e o tratamento penal dos corpos. De acordo com os autores, a guilhotina “marca o grau zero do sofrimento dos corpos“, uma vez que já não autoriza a redenção pela aceitação do sofrimento. Está assim inaugurada a morte em série que, na alvorada do século XIX, conhecerá as primeiras experiências no campo da electrização.
Há, nesta altura, um novo lugar para o cadáver: “O novo valor e a nova dignidade conferidos ao corpo do defunto resultam da emoção crescente suscitada pela morte individual.” No século das luzes, o limite da tolerância à putrefacção altera-se radicalmente.
O aparecimento de nova maquinaria, imposto pela revolução industrial, gera um cuidado específico no controlo do corpo do operário, lugar de desconforto, dor, intoxicação, deformação e exaustão. Tenta-se ultrapassar o fracasso da higiene industrial: os trabalhadores continuam a não utilizar os chuveiros e os lavabos. Para eles, o essencial continua a ser a adaptação adequada da ferramenta ao corpo, a possibilidade de executar rapidamente os gestos exigidos pela sua profissão.
A descoberta do sistema nervoso vai ligar estreitamente o corpo e o espírito, deixando a dor de ser vista como uma simples sensação para ser concebida como um estado emocional. A apologia do sofrimento, que vai para lá do círculo dos médicos e do clero, conhece novos desenvolvimentos com a revolução anestésica.
Lentamente altera-se a relação do corpo com a água, que levará a uma reconfiguração do subsolo das cidades, surgindo também novas noções de higiene e de cuidado da aparência que representam mudanças substanciais cujos efeitos se prolongariam pelo século XX.
O florescimento da ginástica e do desporto fazem incidir a atenção na postura, na análise do movimento do corpo, procurando aperfeiçoar-lhe o rendimento e desenvolver a força. Enquanto a ginástica minimiza as diferenças individuais, o desporto dá-lhes valor, encarnando “um renascimento mais alargado da cultura, uma visão sempre mais tecnicista do espaço, uma visão sempre mais calculada do tempo, uma visão sempre mais democratizada das trocas e da sociabilidade.” Uma visão que, segundo os autores, é já uma visão do futuro. Mas isso é algo que ficará para os próximos dois volumes (já disponíveis), de que falaremos nos próximos tempos.
Outros volumes da colecção História do Corpo
Vol. I: Do Renascimento ao Iluminismo – 1
Vol. II: Do Renascimento ao Iluminismo – 2
Vol. III: Da Revolução Francesa à Grande Guerra – 1
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