E eis que, ao cair da “Noite” (Tinta da China, 2015), a Granta portuguesa oferece aos leitores aquela que será, muito provavelmente, a melhor edição até à data. E, se nem todos os contos incluídos são pardos, há pelo menos um punhado deles que merecem que o leitor dance até ao nascer do dia, com ou sem a ajuda de substâncias dadas à ilegalidade.
M. Pires Cabral abre o livro apontando “a noite como cenário privilegiado para amores“, das alcoviteiras, viajando – com a ajuda de muita literatura – do lado erógeno da noite até à sua ligação profunda à morte. Um lema sobressai neste “A noite, as noites“: “a cada um a sua noite.”
Matilde Campilho assina um dos mais fantásticos e enigmáticos contos, carregados de poesia até ao tutano. Com a música de Roscoe Holcomb a servir de banda sonora, “Folk nocturne” lê-se como uma carta de amor depois do fim, ou talvez do lamento da chegada à idade adulta, depois de uma vida a sentir “saudades de uma época que não chegámos a ver“. Idade adulta que, para mal dos sonhos da juventude, “não é fogo. É noite escura.” Mas o amor, esse, perdura.
“À falta de indicação em contrário, somos todos do dia“, escreve Alexandre Andrade em “Criatura“. Estamos perante um conto – no bom sentido – delirante, em que um homem veste um fato de borracha e progride desordenadamente pela cidade ao sabor de “linhas rectas, curvas, espirais, parabólicas“, servindo-se de telhados, varandas ou campanários de igreja para alimentar a sua sede de noctambulismo.
Em “Caminhar à noite“, conto de Robert Macfarlane, fala-se das condições ideais para se conseguir apreciar um luar perfeito: “lua-cheia, frio intenso, céu nítido – e disponibilidade para gelar até ao âmago.” Olha-se para o noctambulismo como algo melancolicamente kafkiano, e para a noite como um recurso em declínio.
Helen Simpson troca os papéis a um casal e coloca um homem amedrontado em relação à esposa, subjugado a um pensamento pouco reconfortante: “Não era agradável pensar que quase todos os homens assassinados eram assassinados pelas suas próprias mulheres.” Em “Pensamentos nocturnos“, há uma eterna insónia que corre em paralelo a um triste comodismo.
“A noite transfigurada“, de William Boyd, é embalada pela tentação do suicídio, numa história onde a relação entre um benemérito e um poeta farmacêutico, que bebia imenso e era um consumidor compulsivo de narcóticos, é atravessada pela guerra. Poeta esse que quer lutar a guerra de um homem só, e que tem um desejo divino bem presente: “Deus me livre da lucidez.”
Em “Leão com leão“, Antonia Pellegrino apresenta-nos a um bando de “gatas, despudoradas, arrogantes, capas de revista“, para além de recitar o ABC histórico das drogas: “Se os anos 60 foram da maconha, os 70 do ácido, os 80 do pó, os 90 do ecstasy, os 00 carnavalizaram a porra toda e ainda vieram com uma trinca dos infernos na comissão de frente: heroína, crack e o revival deslocado da cocaína, considerada brega desde que os yuppies enfiaram a napa. E quem não tivesse coragem de arrebentar a cartilagem que atacasse de Red Bull com vodca. O negócio era estar ligado.” Um conto surpreendente.
“Daqui em diante só há ursos polares” vê José Riço Direitinho viajar até Svalbard, dando voz aos encontros e desencontros de um escritor com Oliver Rolin e apontando a ficção como algo visionário. Aqui, é a vida que imita a escrita, e não o contrário.
Colin Thubron serve-nos, em “Noite no Vietname“, um requiem a uma cidade profanada que, de “Paris do Oriente” e na hora da despedida dos invasores derrotados, apenas tinha já “o sorriso artificial de um cadáver.”
“Turno da noite“, de Jay McInerney, é um conto assombroso, que começa tratando o leitor por tu: “Não és o género de gajo que, em condições normais, frequenta um lugar destes, a esta hora da madrugada. Mas a verdade é que estás aqui, e não podes dizer que este terreno te é completamente desconhecido, ainda que os pormenores se confundam um bocadinho no teu cérebro.” Aqui, recorda-se o que não se é e adia-se o que nunca vai ser, ao som dos passos do “pó de marcha boliviano” que, por trás do som que rebenta nas colunas, vai sussurrando: “Esta noite, és uma república de vozes.”
A partir de uma substituição de uma válvula de um coração doente, Dulce Maria Cardoso regressa à infância e ao tempo em que não existia a morte – ou sequer a ideia do futuro. Em “O coração do meu mundo“, escreve-se para afugentar o medo.
Mário Cláudio faz-nos entrar em “O sonho de Constantino“, numa viagem profundamente artística onde há um amigo imaginário e, também, um fantasma que nunca bebia.
Já Ana Teresa Pereira leva-nos ao território do sobrenatural em “Inner landscapes”, onde alguém que partiu para cigarros e não voltou regressa, anos mais tarde, para ver o seu lugar ocupado por uma outra, que é como um espelho aperfeiçoado de si própria. No final, ficamos com um enigma nos braços.
A noite deste sexto número da Granta termina com Nuno Júdice e “Uma história de amor” – ou desamor -, onde é crime fazer amor num jardim mas não urinar (sobretudo quando quem satisfaz as necessidades fisiológicas é um agente da autoridade). Uma história de amor não correspondido, da honra da perda, da inevitabilidade redentora da morte.
Mas há também o ensaio fotográfico de Jordi Burch, imagens inquietantes e alternadas de prazer e dor; as ilustrações contidas e tristemente melancólicas de Rachel Caiano: ou a capa de Jorge Colombo, que ilustra brilhantemente esse apelo pelo lado mais inquietante e silencioso do dia. Por tudo isto, esta é uma edição absolutamente obrigatória.
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