Para os amantes de histórias e fábulas, pode dizer-se que o Círculo de Leitores tem estado ao nível do serviço público editorial. Depois do lançamento de “Contos da Infância e do Lar”, dos Irmãos Grimm, que num único volume incluía duzentos contos, dez lendas religiosas infantis, um apêndice com outros vinte e oito contos não incluídos na última edição em vida dos autores (1856-1857), um conjunto de seis fragmentos de contos e um longo capítulo que incluía bibliografia relevante citada pelos autores nas suas notas e considerações gerais sobre diversas tradições nacionais – assim como uma reflexão final sobre a relação dos contos populares com a mitologia -, chega agora a vez da publicação das “Fábulas” (Círculo de Leitores, 2014) de La Fontaine em dois volumes, traduzidas ou adaptadas por poetas portugueses e brasileiros do século XIX e ilustradas, de forma sublime, por Gustave Doré.
Nascido a 7 ou 8 de Setembro de 1621, em França, Jean de La Fontaine estabeleceu quase sempre uma relação de clientelismo com o poder, num período da história em que os escribas profissionais procuravam constantemente “patronos”, protectores e mecenas, trocando a carreira literária pelo assumir da figura de escritor ao serviço dos grandes.
As suas Fábulas, porém, ficaram para a história da literatura como algo único e precioso, um verdadeiro legado. Mas o que distingue, afinal, as Fábulas de La Fontaine de todas as outras? Mais do que a originalidade ou a beleza de estilo, La Fontaine conseguiu dotar os animais de uma vida tremenda, seres que absorvem toda a linguagem e experienciam as paixões intensas que o autor lhes atribuiu. Linguagem que nos transporta até ao mundo rural e surge aos nossos ouvidos – e à imaginação – como um paraíso. O resultado final, carregado de espírito metafórico, andará muito perto de uma comédia humana dos animais.
Tendo vivido dois séculos depois de La Fontaine, com um fosso gigantesco onde cabe a grande crise social deixada pela Revolução Francesa, Gustave Doré foi um dos mais célebres e procurados ilustradores de todos os tempos, requisitado por autores como Shakespeare ou Cervantes.
No texto assinado por Ramalho Ortigão, são revelados os méritos atribuídos ao ilustrador na sua recriação das Fábulas: «…Doré discerniu e separou admiravelmente na obra do poeta o elemento raciocinador e o elemento cantante, e fê-lo de modo tão perfeito que não é mais fácil na construção plástica do que na construção literária decidir qual desses dois elementos prepondera na poesia de cada apólogo.»
Ilustrações a preto e branco, obsessivas com o pormenor e repletas de detalhe, onde está sempre presente a melancolia, o lado sombrio da alma humana e, sobretudo, a excelência de um ilustrador que, para lá da arte própria, soube ler – e compreender -de forma surpreendente os autores para os quais trabalhou (vejam-se, por exemplo, as ilustrações que Doré fez para “Dom Quixote”).
Com um trabalho gráfico e uma paginação notáveis, as “Fábulas” de La Fontaine estão, desde já, entre as mais bonitas edições de 2014. De aquisição obrigatória.
Sem Comentários