Para os mais pequenos que não se deixarem assustar pela capa, certamente levados pela máxima de que quem vê capas não vê corações em sobressalto, David Williams trata de lançar o aviso antes do prólogo e logo em letras capitais: «Atenção. Isto é uma história de terror. Com muitas palavras inventadas.»
Fala-se aqui de “Doutora Tiradentes” (Porto Editora, 2015), o livro de Williams que sucede ao bestseller “Avozinha Gangster”, que fará com que a pequenada se depare com um dos medos mais comuns ao ser humano: ir ao dentista e enfrentar uma parafernália de objectos de tortura, isto enquanto uma banda sonora arrepiante trata de ensombrar uma sala com cheiro a anestesia.
Neste livro a tradição está muito longe de ser o que era. Fazendo fé nos ensinamentos parentais e dos livros de encantar, as crianças deixam os dentes debaixo das almofadas à espera de uma recompensa da mítica fada dos dentes. Porém, ao acordarem, a almofada esconde coisas verdadeiramente desagradáveis: lesmas mortas, aranhas vivas, centenas de pulgas aos saltos e outras coisas capazes de provocar enjôo a gente que, habitualmente, não se deixa levar por isso.
Quanto a Alfie, o pequeno herói desta história, não é rapaz para sentir na pele este tipo de problemas. Afinal, depois de uma experiência assustadora com o inábil Dr. Carquilha, em que depois de muitos puxões, sacões e empurrões acabou por ficar sem um dente que afinal estava de boa saúde, Alfie jurou nunca mais meter os pés num consultório de dentista, uma promessa que tem mantido inquebrável há já seis anos. Os seus dentes, para lá daqueles que já caíram, são quase todos amarelos, exceptuando os que alcançaram já o respeitável estatuto castanho.
Porém, depois de uma visita da Doutora Tiradentes à sua escola, Alfie pressente que os dias de reconfortante podridão estão prestes a terminar, tudo por culpa de uma Dra. que fabrica a sua própria pasta de dentes e oferece doces – segundo ela inofensivos – à criançada. Alfie, juntamente com a nova amiga e aliada Gabz, desconfiam que por trás de tanta doçura se esconde um plano verdadeiramente maléfico, e que a Doutora Tiradentes será a responsável pelas estranhas ofertas que vão aparecendo debaixo das almofadas. E, também, pelo súbito aumento de dentes caídos um pouco por toda a parte.
Mas nem só de dentes se faz o dia-a-dia de Alfie que, mesmo com um hálito capaz de fazer murchar plantas e matar insectos, é um pequeno herói, tomando conta do pai que está confinando a uma cadeira de rodas depois de uma vida passada nas minas, tendo a mãe morrido no dia em que Alfie veio ao mundo – há algo de dickensiano nesta história. Apesar da boa vontade e espírito de sacrifício de Alfie, as coisas estão prestes a descambar: a água entra pelo telhado da casa sempre que chove, a maior parte das janelas tem rachas e o bolor trepa pelas paredes até ao tecto. Entre a perseguição da Doutora Tiradentes, as visitas constantes de uma assistente social, a falta de dinheiro e um ano escolar que tem tudo para acabar mal, Alfie não tem mãos a medir. Conseguirá ele desmascarar a Doutora Tiradentes e salvar o que resta da sua boca?
Com um terror bem-disposto e um monte de palavras inventadas como desreconfortante, gargaspirava, despeluzada ou nojêntica, “Doutora Tiradentes” tem tudo para arrancar sorrisos – mas não os dentes – aos mais pequenos que, a partir de agora, pensarão duas vezes antes de deixar um dente caído debaixo da almofada.
2 Commentários
Esta bom mas podia ter o resumo todo
Os livros têm esta magia. Cada um vê diferente. Li com o meu filho de 9 anos a lágrima só não correu abundante por resistência e para não magoar o miúdo. Um verdadeiro drama de pobreza extrema e tragédia. Explicar a uma criança de 9 anos que existem vidas assim… Tudo menos um livro infantil a menos que o objetivo seja um banho de realidade para ajudar a apreciar a vida.