A irracionalidade de alguns actos (des)humanos continua a assombrar um dos mais negros períodos da história mundial. Por vezes, parece que a provação enfrentada pelo povo judeu durante o imperativo Nazi aconteceu numa galáxia distante. Como é possível conceber o extermínio de um povo e lidar com tal destino?
Por outro lado, a amplitude contrastante entre estar “marcado” para a exterminação e manter um perfil que era constantemente saudado entre as elites é um intenso mistério. Essa hesitação agoniante foi sentida por alguns que, inseridos em uma particular conjuntura se sentiram, enquanto judeus, uma minoria privilegiada que gozava do “luxo” do quase livre arbítrio, mas que usava esse poder para ajudar os seus semelhantes a fugir de uma realidade negra.
O grande objectivo era escapar à morte certa, julgamento esse decidido num tribunal unilateral e omnipotente. A fuga, entendida na forma de escape face à deportação para as fábricas de morte idealizadas pelo Terceiro Reich, colocou em cena indivíduos que ousaram desafiar o poder instituído numa Europa à mercê de um louco chamado Adolf Hitler.
É sobre uma dessas almas altruístas que recai “Do Holocausto à Salvação” (Vogais, 2014), uma obra da autoria de Bernard Wasserstein, historiador e professor de História Judaica Europeia Moderna na Universidade de Oxford, que também se dedica à História e Política de Israel. A par de nomes como Aristides de Sousa Mendes, Oskar Schindler ou Raoul Wallenberg, Gertrude van Tijn, uma judia alemã com nacionalidade holandesa e um dos principais membros do Conselho de Amesterdão, logrou lutar pela vida de milhares de pessoas cuja esperança fugia a cada segundo face à determinação das forças Nacional-Socialistas.
“Do Holocausto à Salvação” mostra o seu percurso diplomático no seio de uma das maiores convulsões mundiais, aproveitando Wasserstein para relembrar muito daquilo em que se centraram os debates judaicos realizados e propostos posteriormente por Hannah Arendt que enfatizava, pertinentemente, noções como a “cumplicidade” e a “culpabilidade”, esquecendo-se de entender a extraordinária coragem de activistas como van Tijn, que ousaram desafiar a autoridade Nazi assim como a – por vezes – amorfa intervenção dos Aliados, conceito entendido neste contexto como potencialmente amigáveis.
Ao longo das páginas deste muito interessante e acutilante livro, somos convidados a sentir os inacreditáveis algoritmos emocionais que pessoas como Gertrude van Tijn sentiam ao pensar os trabalhos diários de resgate e o constante recorrer à boa vontade alheia através de fundos e apoios supranacionais. A dilacerante dúvida entre quem escolher, o dilema da “opção” face à deportação mediante inevitáveis rivalidades e “traições”, assombrava a mente da holandesa.
Mas, sob outra perspectiva, “Do Holocausto à Salvação” evoca o poder da sustentação absolutamente vital da amizade, esse porto de abrigo que também salvou van Tijn da morte, principalmente quando a holandesa passou por períodos dramáticos em termos pessoais – nomeadamente nos anos 1930, quando se divorciou e viu alguns dos seus melhores amigos e vitais alicerces falecerem.
A tenacidade do espírito de van Tijn desafiou tudo e todos e, quando a Segunda Guerra Mundial atingiu o seu pico, Gertrude chegou a Portugal por forma a deixar para trás a sitiada Amesterdão. Na bagagem, mais que pertences, trazia uma missão especial: negociar o refúgio de milhares de judeus, de naturalidade alemã e holandesa, com a “estranha” permissão das autoridades nazis.
Desconfiadas, as autoridades portuguesas encaravam Gertrude van Tijn com um misto de respeito e confiança e foram muitas as teses criadas em volta da holandesa que, em tempos, optou pelo Sionismo. Teria sido ela um simples meio estratégico dos Nacional-Socialistas ou uma audaz heroína que pactuou com o inimigo para defender ao máximo o seu povo?
São alguns desses mistérios que “Do Holocausto à Salvação” pretende esclarecer, assumindo-se como um extraordinário documento que permite observar uma das mais obscuras fatias da cronologia mundial, ressalvando o papel que o território português – e principalmente a sua capital, descrita por alguns como “o ponto de estrangulamento da Europa” – desempenhou nesse período.
Dividido em doze capítulos, esta obra traça um magnífico perfil de uma mulher que teve de se reconstruir por forma a conseguir ajudar outros, que o “destino” declarou inferiores e indignos de uma existência normal. Wasserstein consegue transmitir ao leitor os dilemas de uma alma que lutava contra a própria consciência ao negociar com um dos mais pérfidos inimigos da humanidade.
Sem Comentários