No mundo da hereditariedade e da passagem de testemunho, há um ditado que corre, de família em família, como uma espécie de boa nova e de anúncio ao mundo, que estimula o aparecimento de uma orgulhosa baba: filho de peixe sabe nadar. No caso de Rui Miguel Tovar, filho do eterno comentador desportivo Rui Tovar, o ditado assenta que nem uma luva ou, já que estamos em modo aquático, como uma barbatana.
Nascido em 1977, Rui Miguel Tovar foi jornalista do Record, onde habitou os leitores a gostar de futebol para lá dos fait-divers das nomeações, dos golos mal anulados, das penalidades por marcar e das expulsões que não aconteceram mas deveriam ter acontecido.
Em “Dicionário Sentimental de Futebol” (Quetzal Editores, 2015), com entradas de A a Z que não figurariam necessariamente numa enciclopédia futebolística rigorosa – basta pensarmos em palavras ou expressões como Guronsan, Forno Interno, El Chato ou Donzelas -, está impressa essa paixão pelo chamado desporto-rei, um amor que, ao contrário de coisas mais ou menos passageiras como carros, namoradas, religiões ou partidos, não pode ser amansado, nem mesmo que o clube do coração passe por anos de travessia no deserto ao nível da caminhada de Moisés.
“O pontapé de moinho é uma tesoura com todo o corpo no ar, paralelo ao chão. É um remate artístico. Se for golo é poesia.” Bastará esta primeira frase para o leitor ser transportado para esse estranho mundo onde 22 homens andam a correr atrás de uma bola, num livro onde, apesar de não haver sinais de versos ou estrofes, não falta uma escrita com toques de poesia e histórias para todos os gostos e apetites: a vertigem x-filiana da Gigi Meroni, o promissor extremo do Torino morto por atropelamento por um jovem que o tinha como ídolo maior e que, mais tarde, se veio a tornar presidente do Torino. E a levá-lo à falência pouco tempo depois; a tragédia de Pavão que, com 26 anos, morreu durante um jogo com a mulher a assistir na bancada; a história de dois gémeos que jogavam no Manchester United, tendo um, deles de se casar de modo a que Ferguson os distinguisse; o espírito de equipa mostrado quando o Benfica trocou o conforto de um hotel pelo desconforto de um anexo, em solidariedade com um jogador impedido de lá dormir pela sua cor de pele; o braço de ferro entre Cruisff e Weinseiger, que terminou numa assembleia-geral com o despedimento do segundo – os golos são quem mais ordena; uma história de saúde (ou da falta dela), quando Fernando Martins pressentiu uma nega na votação para a contratação do jovem Erikson e simulou um ataque cardíaca, com direito a ambulância – o sueco foi contratado pela porta de cavalo e, em dois anos e sem direito a votação, conquistou dois campeonatos, uma taça de Portugal ganha ao Porto nas Antas – além de ter perdido na Luz uma final europeia contra o Anderlecht; do bigode como o maior talismã nacional; de frases tão emblemáticas como colocar a carne toda no assador; ou, mais recentemente, histórias de aculturação em sentido inverso, como a que Mourinho levou para a Britânia – em pouco tempo já os tabloides ingleses falavam de they put the bus in front of the goal.
Gostam de futebol mas estão cansados de perder o vosso tempo a assistir a programas aborrecidos na televisão? Leiam este livro e terão a prova de que o futebol é, verdadeiramente, uma história de amor. Do vosso (nosso) amor.
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