Num primeiro contacto, tudo é desconhecido. A informação sobre Júlio Henriques não abunda e a biografia que figura em “Deus tem Caspa” (Antígona, 2014 – reedição), à semelhança do teor da dita obra, é hilariante. Ainda se pesca que é tradutor, publicista e editor, responsável pela revista Flauta de Luz, um “boletim de topografia” que “tem como antepassados as revistas Subversão Internacional (Lisboa, 1977-1981 e Pravda – Revista de Malasartes (Coimbra, 1982-1992), bem como diversas incursões nas revistas Utopia, Coice de Mula e Cadernos Periféricos“. Com algumas entradas sobre o autor no ciberespaço, nomeadamente na página Portal Anarquista do ex-colectivo libertário de Évora, é também através da contribuição de blogueiros obscuros que se alimenta a figura enigmática do autor. Posta a experiência de principiante ao descoberto, é seguro afirmar que a pessoa existe e recomenda-se o que escreve.
Algures entre a dicotomia povo/anonimato e o mito, o autor está imerso de cabeça aos pés na sua persona literária, indignado com o actual estado da sociedade portuguesa, falida e repetitiva nos seus maneirismos. Cómico, aliás, mais genial que muitos humoristas cá da terra, o absurdo de “Deus tem Caspa” tanto mimetiza uma escrita académica pomposa (um espectro coimbrão paira nos textos, pese o autor não ter estudado em Coimbra, conhece bem a cidade), como capta lindamente o estilo gasto da comunicação social. Nesta provocação em jeito de cidadão x, Henriques introduz um anti-herói que conhece, paradoxalmente, tudo e nada sobre alguma coisa. Elias Eupróprio (se bem que nem o sobrenome seja constante) certamente enterra em si, lá no fundo, restos de Júlio Henriques, surgindo este na mescla caricatural de géneros literários, cada qual com os seus vícios, vícios dominados através de uma sátira aos lugares comuns da escrita profissional.
Quer-se “Deus tem Caspa” como um fantasma da literatura portuguesa, que assombre toda a cultura desde a fundação do país, passando pelo colonialismo e o Estado Novo, até ao recente período embrutecido do nosso pequeno recanto. Leia-se como uma afronta à mitologia heróica, ajustando contas sem enumerar nomes – mas lá identificamos alguns, nem que seja por ler coisas onde elas não estão. O devaneio de Júlio Henriques consegue delinear o cerne de Portugal contemporâneo com imediatismo, sem possuir intenção de rigor histórico. Sem dúvida que se tratam de comentários incisivos, estando os textos munidos de uma insanidade mais produtiva que a de alguns comentadores, cujo disfarce de racionalismo opinativo está a mais nos noticiários e canais de informação.
Deambulando pelo mesmo espaço, Alberto Pimenta é invocado por Alice Corinde (autora do prefácio, bem provável que seja Júlio Henriques), um elo que não será descabido, já que “Discurso sobre o filho-da-puta” e “Deus Tem Caspa” partilham traços em comum a nível de estilo. Deviam ambos figurar nas leituras obrigatórias de secundário, nem que fosse para corromper a juventude e agitar as hostes.
1 Commentário
Com o passar dos anos e o estreitar da amizade, a admiração que nutro pelo Júlio Henriques cresceu exponencialmente. Ele é a pessoa mais inteligente, idealista e culta que já conheci. O seu desapego (materialista) e a sua generosidade e cordialidade são também muito difíceis de igualar. Mais do que um grande escritor, é um bom homem com uma mente brilhante ao serviço das melhores causas.
Há quem diga que ele tem um olhar triste e tímido. Mas é de riso fácil, desfrutando de um sentido de humor muito aguçado, podendo esgrimir, como poucos, a sátira de pendor surrealista, como uma poderosa arma política capaz de virar do avesso qualquer rei nu na tragicomédia da vida cheia de absurdas ironias e gritantes injustiças que enfrenta com destemor incansável. Até costuma se atrever em arriscadas incursões pelo campo minado dos trocadilhos, e sai de lá inteiro.
Guerreiro e mestre das palavras, sabe ser demolidor contra tudo o que é pomposo, dogmático, opressivo, obscurantista e deletério ao essencial e verdadeiro, ofendendo os seus admiráveis ideais & desideratos. Não obstante, nunca deixa extinguir a sua natural candura e pulsão daimosa junto de todos os que têm o privilégio da sua companhia.
Tranquilo, gentil e ponderado; nunca o vi ripostar com injuriosa agressividade, dando troco na mesma moeda. Avesso a desgastantes celeumas, não levanta a voz e nem sequer expressa desagrado através de grosseiras interjeições. Por definição, [ter] fé é acreditar sem ter suficientes evidências. Como seria de esperar, o J.H. não chafurda alegremente na credulidade ingénua. O seu ceticismo crítico é indissociável duma ética humanista e humanitária. Eu sou demasiado míope para conseguir lobrigar a rútila esperança que ele acalenta para a humanidade. Daí consegue destilar otimismo suficiente para continuar a perseguir o sonho de comunidades alternativas unidas por projetos que visem a sustentabilidade solidária e de inspiração anarcotribalista. Suspeito que ele gostaria de escolher a dedo os membros da comunidade que ainda aspira assentar arraiais…Boa sorte. A par da idade avançada, o acumular de más experiências na convivência prolongada com a malta dita “alternativa” , vão minando a sua vontade em aventuras cheias de “desvarios e idealizações “ (como ele próprio define), que exijam chutar para a valeta o conforto e o sossego que já granjeou.
Mas é um diligente construtor de utopias. Pedra por pedra, em artes de aprimorado alvanel que arrosta a maldição de Sísifo.
Se tem um cata-sonhos na sua consciência, por empatia, nele ficou acumulada uma quantidade ingente de horrores mundanos, como se se tratasse duma rede de contenção de detritos flutuantes num rio poluído – que o J.H. insiste em limpar até onde as suas mãos alcançam. Espantosamente, tamanho fardo não chega a lhe obnubilar o olhar & espírito. Esse seu encantamento e estoicismo não conformista é muito inspirador.
Tem a sensibilidade de poeta libertário em reconciliação telúrica. Deve ser por isso que se dá tão bem com as crianças, os desajustados e os animais. Para todos estes consegue criar ambientes solazes.
Nunca me forçou a porra alguma, assim como eu também não tive a menor necessidade de o impressionar. reiteradamente se mostrou pronto para me ajudar. E deu-me tempo para crescer, até eu conseguir flanar com familiaridade pelos vastos e complexos bosques do seu ideário . E nem foi necessário indicar-me o caminho das pedras. Talvez por ingenuidade, cheguei a acreditar que esse homem extraordinário nutria alguma admiração por mim. O suficiente para consolidarmos o respeito mútuo, como base para uma amizade digna desse nome. Houve um tempo em que ele até me pedia conselhos, na qualidade de naturalista também enamorado pela ciência. O mais triste foi ter recentemente perdido o J.H., não tanto para a Covid-19, mas para a pandemia de perigosas e aviltantes conspirações anticientíficas que se opuseram às vacinas… As convicções ludditas que nos unem acabaram por nos empurrar para direções opostas no que diz respeito à ciência.