“O amor é o dia.”
Armando Silva Carvalho, o decano da poesia portuguesa, tem um épico e consagrado trajecto lírico. Não é por acaso. O homem escreve como um grego. E sente como um romano.
Em “De Amore” (Assírio & Alvim, 2015), a sua poesia quase prosa sem deixar de ser suprema, vem repleta de ressonâncias clássicas, é quase aforística sem querer, é poderosa especialmente nos substantivos, que ganham um peso monumental. Mesmo quando a balança se desequilibra com os chumbos da vida:
“Que peso tem agora a dor nessa balança
cujo fiel nem tu consegues
acertar?”
O decaimento clássico conduz a um inevitável, mas delicioso kitsch, que soa ao século um antes de Cristo. Como Horácio, Armando Silva Carvalho cativa bem mais pela sábia exuberância do que pela economia. O autor não tem medo das palavras. E da sua representação na percepção média do leitor.
“Este amor está preso aos pés da terra,
o seu cale é de ferro,
cresce na minha boca, estremece e resiste
nas frágeis construções
da nossa antiga, privada, fiel
arquitectura.”
E é do amor, afinal, que se trata. O amor adolescente, masturbativo, desorientado, assustador; o amor maduro, da mulher amada – e da mulher perdida; o amor melancólico, fúnebre, elegíaco. O amor marítimo, português e saudoso; o amor dos outros e pelos outros, porque “ninguém ama sozinho”. O amor individual, intestino, de ser e estar vivo; o amor das palavras e do drama que encerram; e, por fim, o amor primeiro, cosmogónico, que é, claramente, um exercício gravítico entre corpos, porque “matéria atrai matéria”.
Naquele que é, talvez, o mais belo momento de todo o livro, o poema “Fósseis do Amor da Escrita”, vinga essa eroticidade fatalista e carnal que é telúrica e rochosa, numa espécie de desenho sexual do cabo das tormentas:
“Pensemos na melhor explicação do mundo
do prazer.
O sabedor erótico
serpenteia as imagens nessa senda densa
de efusões de guerra enlanguescida
e de nervosas redes
na memória.
E vê-las passar no poema,
nos estratos das rochas junto ao Cabo,
nessa carta de pedra, que o tempo escreve ao mar
com a mão do vento, extensa,
milenária.
(…)
Sentindo o fornicar, mentalizando
o ardor,
ó palavras do ócio a laborar no vácuo,
acabai por ora
a tímida vertigem da invocação,
arrefecei as pedras no rigor do nada, tolhidas,
colhidas, recolhidas em sólido
sangue, vivo.”
A literatura relaciona-se assim com a geofísica do amor, e de uma forma tão poderosa que conseguimos, dir-se-ia, sentir o vento das palavras.
E a propósito de ventanias descobrimos, entretanto, um curioso retrato lírico de Saramago e Penélope, aves míticas propulsionadas a jacto pelos céus do mundo, encontrando abrigo seguro e descanso breve no improvável cenário vulcânico de Lanzarote e fechando, juntos, uma história de amor que será, por si só, literária.
Mas, à narrativa passional, é implícita a inevitabilidade da morte. Metade deste livro, as “42 Canções Entre 2 Portas”, é um exercício de luto pela irmã do autor, Genoveva. O propósito elegíaco é de tal forma pungente e inspirado, que transcende a dor exclusiva do poeta, para agregar firmemente o sofrimento de quem fica vivo, perante a saída de cena de alguém que se ama.
“Eu sou a grande viúva
que o tempo acomodou aos dias
do desejo.
Levo o amado,
e o amado é o mundo.”
Armando Silva Carvalho lança-nos para dentro do seu universo com corajosa e sincera volúpia, mas também nos eleva para um cosmos de sensações que conhecemos e de versos que nos são familiares sem que alguma vez os tivéssemos lido. Há, para o leitor de “De Amore“, a gratificante promessa de um território imaterial que é intimamente partilhado com o poeta.
Soturno e melancólico, grave e operático, “De Amore” é um daqueles livros que não têm idade e que, por isso, podem durar para sempre. Afinal, a morte não tem leis iguais para toda a gente. A não ser quando se está vivo.
No último poema das “42 Canções”, Armando Silva Carvalho confessa: “Sou um europeu de luto”. Não somos todos?
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