Alguns livros e, principalmente, alguns escritores, são donos de uma magia própria, de uma espécie de constante surpresa comunicacional. São esses, livros e escritores, que nos agarram, prendem, como se de uma pena perpétua se tratasse da qual não abdicamos, rejeitando qualquer hipótese de amnistia.
A obra de Valter Hugo Mãe está dentro leque restrito, dessa viagem escrita que nos transporta para lugares impensáveis, pouco conhecidos ou explorados, como, por exemplo, o âmago da nossa alma.
É com essa sensação de conquista que nos rendemos a “Contos de cães e maus lobos” (Porto Editora, 2015), um conjunto de 11 contos que simbolizam o enfrentar das dúvidas mais profundas. Tal como Mia Couto escreve no prefácio: «há nesta antologia de contos o convite ao regresso a um canto de que nunca saímos, um reencantamento da infância, uma cumplicidade de quem partilha vazios e silêncios».
No fundo, é como entrar num quarto recôndito, só nosso, que (re)visitamos quando somos atingidos por algo emocionalmente forte, que nos desequilibra, momentânea ou eternamente, colocando em causa aquilo que entendemos, construindo o nosso refúgio de felicidade.
Escrito tendo em conta – ou não – um público infantil, “Contos de cães e maus lobos” é sinónimo de 11 estórias que navegam entre o inocente e a desconfiança, entre as certezas e as dúvidas, entre passado e presente, entre a verdade e aquilo que a vida, justamente, nos dá ou retira.
As primeiras páginas de cada pedaço destas epifanias em forma de conto são brilhantemente ocupadas por desenhos de 11 artistas. Para embelezar este livro, Valter Hugo Mãe convidou Ana Aragão, Cadão Volpato, Daniela Nunes, David de la Mano, Duarte Vitória, Filipe Rodrigues, Graça Morais, JAS, Joana Vasconcelos com Alice Vasconcelos, José Rodrigues, Luís Silveirinha, Nino Cais e Paulo Damião.
Ainda que afirme «não saber escrever para crianças», o autor de livros como “O Nosso Reino” ou “Desumanização” desperta em nós a candura de outros tempos, enclausurando-nos numa especial bolha que da qual não queremos sair, o tal quarto que referimos.
Exemplo disso é, por exemplo, “O Rosto”, uma reflexão que desafia a noção de realidade face à vida que nos fecha sobre rotinas próprias e que apenas evolui, cresce, quando entramos em contacto com outros e sentimos experiências alheias. Para Valter Hugo Mãe tal sucede pois «não somos nada feitos do mais imediato que se vê à superfície. Somos feitos daquilo que chega à alma e a alma tem um tamanho diferente do corpo».
E nada melhor que traduzir esses sentimentos através do privilegiado meio de comunicação que é o livro. Em “O Rapaz que Habitava nos Livros” retiram-se quaisquer dúvidas nesse sentido: «Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos assim conversar com Camões, Shakespeare, ou Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tantos anos. A morte não importa muito para os livros».
Estamos, acima de tudo, perante um elogio ao próprio objecto livro, meio que tanto prazer nos dá e cuja dimensão se perde em unidades espácio-temporais. “Bibliotecas”, conto que encerra esta colecção, é perentório: «Todos os livros são infinitos. Começam no texto e estendem-se pela imaginação. Por isso é que os textos são mais do que gigantescos, são absurdos de um tamanho que nem dá para calcular. Mesmo os contos, de pequenos não têm nada. Se os soubermos entender, crescemos também, até nos tornarmos monumentais pessoas. Edifícios humanos de profundo esplendor».
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