No mundo das artes, sejam elas o cinema, a música ou o futebol, há momentos nascidos de ideias ou de gestos singulares que valem toda uma vida ou carreira, mesmo que aqueles que os antecederam ou se irão seguir estejam longe de estar à altura. “Swingers”, de Doug Liman – no cinema -, “Silent Alarm”, dos Bloc Party – na música – ou o golo de Kelvin contra o Benfica ao minuto 92 – no futebol – estão entre esses momentos que ficaram gravados no tempo, condenados a serem repetidos de geração em geração como instantes mágicos e irrepetíveis – para os seus protagonistas – da história.
Na literatura não faltam exemplos de grandes ideias, como o Cortázariano “Rayuela” – que propões uma multiplicidade de níveis e formas de leitura – ou, mais recentemente e num outro universo completamente diferente – e nem sequer paralelo -, a série O Lar da Senhora Peregrine Para Crianças Peculiares, que havia começado com um primeiro e homónimo título. “O Lar da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares” terá conseguido provocar, em muito bom leitor, uma sensação de melancolia da qual terá sido difícil recuperar, e muitos desses leitores provavelmente recusaram qualquer tratamento.
O acto de magia começava com um simples folhear: a capa num preto-e-branco fantasmagórico, o cheiro do papel que recordava a infância, os pormenores artísticos inscritos nos rodapés, os separadores entre capítulos que, além de belos, permitiam recuperar o fôlego antes do virar de página e das fotografias antigas que, naquelas folhas, eram olhadas como um daqueles tesouro que não queremos partilhar com ninguém.
Porém, a grande mais-valia e surpresa do livro consistia nas suas fotografias, que o autor foi coleccionando entre feiras e lojas de antiguidades, e que serviram de ponto de partida para a construção da história, um verdadeiro festim para os amantes de fantástico. Nele havíamos acompanhado a tragédia familiar que levou Jacob, um jovem de dezasseis anos e o narrador desta aventura, a viajar até Cairnhom, uma remota ilha na costa do País de Gales, para tentar encontrar as ruínas do lar para crianças peculiares criado pela senhora Peregrine. Isto se o lar existisse, pois Jacob desconhecia se não se trataria apenas de uma história de encantar inventada pelo seu avô, que lhe descreveu crianças que poderiam ter estudado na Academia criada um dia por Charles Xavier: uma cospe fogo, outra levita e um outro tem abelhas a viver na sua barriga.
O final, de tom poético e completamente em aberto, deixava o leitor a sonhar alto, e também questionando-se se Ransom Riggs não teria, sem disso dar conta, metido os pés pelas mãos. Algo que, esperava-se, ficaria esclarecido em “Cidade Sem Alma” (Bertrand Editora, 2015), o que apenas acontece em parte. Isto porque tinha ficado a ideia de que longe dos vórtices os peculiares envelheceriam rapidamente, algo que nunca é mencionado – ou explorado – neste segundo livro, o que poderia dar um ar mais credível e consonante ao primeiro volume, mesmo que possa tratar-se de uma questão de pormenor. Cada leitor que o interprete à sua maneira.
O livro retoma a acção no ponto exacto do seu antecessor, mostrando “…uma procissão de fantasmas navegantes, ou prestes a serem fantasmas”, composta por dez crianças e um pássaro. Após terem visto o lar ancestral ser destruído e a Senhora Peregrine ser transformada em pássaro, Jacob e amigos partem tendo Londres como destino, com a missão de devolver a forma humana à Senhora Peregrine.
A situação é verdadeiramente negra: os errantes percorrem os vórtices e a raptar as ymbrynes – uma espécie de gurus da magia -, pretendendo regressar ao ano de 1908 e com a cabeça virada para uma tarefa singular: extrair a segunda alma dos peculiares.
Jacob, que viu a sua vida sofrer uma reviravolta extraordinária, apaixonou-se por uma rapariga com uma alma centenária, que vê nele a salvação de toda a nação peculiar. Afinal, Jacob é o único que consegue ver os sem-alma e, além disso aprende também a senti-los à distância, ainda que o sistema de alarme não seja lá muito confortável: vomita quando eles estão próximos.
Apesar das muitas reticências levantadas por alguns elementos do grupo – sobretudo por um deles -, esta estranha irmandade peculiar tenta chegar a Londres antes que o tempo se esgote – antes que a Senhora Peregrine perca todos os vestígios de ser humano -, confiando na sabedoria do livro das histórias peculiares, que parece esconder enigmas e visões que os ajudarão no tempo presente.
Nesta jornada cativante encontraremos animais tão estranhos quanto uma emurafa (metade burro, metade girafa), um cão que fala – e que usa óculos escuros e fuma cachimbo -, galinhas apocalípticas – receberam esta alcunha por porem ovos explosivos quando se entusiasmam – e leremos histórias sobre animais peculiares já desaparecidos, como uma baleia capaz de voar ou minhocas que tinham o tamanho de casas. Há ainda uma lenda sobre o assustador vórtice da punição, que se diz ter sido concebido para enclausurar errantes capturados, criminosos inveterados e loucos perigosos.
Combinando fantasia e terror – este último em doses moderadas -, “Cidade Sem Alma” mantém o fascínio despertado no leitor com o primeiro livro, e certamente vai deixá-lo ansioso por saber que destino terá Ransom Riggs reservado para este bizarro e adorável bando de crianças peculiares.
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