Com ideais opostos à chinfrineira que começava a ser exportada de países estrangeiros, o Estado Novo optou por ceder à eufórica massa adolescente que, vendo satisfeita a oferta musical “tipo Shadows” ou “tipo Beatles”, abstinha-se (ou pelo menos era essa a ideia que passava) da delinquência. O se não os consegues vencer, junta-te a eles decorreu, na maioria dos casos, com normalidade, e exceptuando a ocasional repressão in loco e o activo lápis azul da censura, o jovem português da década de 60 soube ser isso mesmo.
A dedução é instantânea: Ié-Ié deriva de “Yeah! Yeah!”, o grito de guerra de uma estirpe musical electrificada em decibéis nada tímidos, tendo em conta os recursos da época. A origem remonta certamente à cultura negra americana, mas não tardou a explodir em popularidade quando a juventude inglesa e francesa nela pegou, adaptou e deu nova roupagem para seduzir as massas. A pop afirmava-se em ramificações como o twist, o surf ou o rock n’ roll (que bom nome o tenha), resultando em todo o tipo de mesclas.
Assim, a “Biografia do Ié-Ié” (Sistema Solar, 2014), assinada pelo jornalista Luís Pinheiro de Almeida, é o dicionário (quase) definitivo da cena musical portuguesa de 60 e 70, que seguia na via oposta ao apelidado “nacional-cançonetismo” à maneira de Tony de Matos, Simone de Oliveira ou Madalena Iglésias – música aprovada pelo regime, pese que nas entrelinhas nem sempre apoiasse a causa conservadora.
O misturar de uma portugalidade intrínseca com estilos importados – as tais guitarras amplificadas e os ritmos de estalada – fizeram do movimento Ié-Ié português, acima de tudo, uma grande salganhada. A linha que o define é pouco clara, já à luz dos textos redigidos na época. Nesse sentido, a “Biografia do Ié-Ié” ilustra bem a ingenuidade da época que se espelha com a de hoje, ou seja, muitos destes colectivos (Sheiks, Chinchilas, Ekos, Conjunto Académico João Paulo, enfim, incontáveis) não passavam de putos que só queriam fazer música ao jeito dos seus ídolos. Mas desses grupos, grandes nomes da música portuguesa que nos são familiares, consolidaram-se anos depois (mencionando apenas três) José Cid, Paulo de Carvalho ou Fernando Tordo.
À semelhança de outros países, o histerismo à Hard Day’s Night foi dando lugar a outros ditames populares. O termo Ié-Ié poderá ter perdurado, mas não tardou a conotação depreciativa quando aplicada ao clima de competição patrocinado pela ditadura, que se fazia sentir nos concursos de bandas, alternativas dos promotores para não pagarem os músicos (veja-se o mítico Concurso Ié-Ié do Teatro Monumental, organizado “pelo jornal O Século a favor das Forças Armadas no Ultramar, através do Movimento Nacional Feminino”).
O sonho de muitos destes jovens terminou atempadamente, assim que foram encaminhados ao lote para uma África hostil, de ferida aberta. A Guerra Colonial asfixiou a rebeldia do Ié-Ié. Em paralelo, a ditadura comportava-se igual a si mesma, com músicos forçados a cantar em inglês para contornar a censura. Este passado carregava a geração seguinte, com a renovação do rock na década de 80, marcando a diferença com artistas sem temor de abalar o conservadorismo beato dos anos de Salazar e Caetano. O princípio, se é que alguém o pode apontar, nunca é um verdadeiro início, até porque antes de Rui Veloso, já muitos por cá tinham vendido a alma ao diabo.
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