Constando que Eça fora discípulo de Ortigão, é com prazer que se lê a breve menção do encontro entre ambos em Cascais, onde almoçaram «tranquilamente num ventoso dia de Inverno.» Além-leitura, fantasia-se tais ilustres privando, tal qual personagens. Pontos em comum na escrita são facilmente descodificados, não fosse a acutilante crítica social herdada de mestre para discípulo – e de discípulo para mestre.
O objecto entre mãos intitula-se “As Praias de Portugal – Guia do Banhista e do Viajante” (Quetzal, 2014), cujo autor, o referido Ramalho Ortigão, utiliza a sua rica prosa para mais do que um simples itinerário ou preçário auxiliar. Também os contém, claro está, mas não são de todo o motivo pelo qual é republicado mais de um século depois. É um documento de dimensão histórica, na medida em que nos dá muitas pistas de reformulação do quotidiano oitocentista, como os costumes burgueses ou a pompa aristocrática, com especial atenção aos indivíduos que se tentam enquadrar à força num ou ambos os anteriores. Salientados ficam padrões que persistem até hoje, aliás parte da força motriz do discurso de João Botelho para a nova adaptação d’Os Maias ao cinema.
Sobre as praias em si, destacados ficam os capítulos “De Pedrouços a Cascais”, “Póvoa de Varzim” ou “A Foz”. Porém, o ritmo tende a apressar-se, não havendo um discurso muito demorado, não tanto como há sobre as peculiaridades das áreas circundantes, ou as vicissitudes dos alojamentos e restauração. Ortigão reserva uma introdução e um terceiro lote de capítulos ao lado científico e mitológico do mar, da água e do banho. Sobre o mar, confirma-se a essência de ser português; dada a pequena área terrestre de que dispomos numa direcção enveredamos pela outra, o promissor Atlântico, diminuindo assim os limites da fronteira e alavancando sonhos. Não será de estranhar, por isso, a exaltação feita a clássicos como Os Lusíadas ou História Trágico-Marítima, elogios tecidos por Ortigão à alma portuguesa sofrida, que triunfa perante adversidades.
No que toca à medicina, saúde e bem-estar, o autor muito tem a dizer, desde métodos de socorro a afogamentos, a dicas sobre boa alimentação. Sendo alguns assaz primitivos, o homem do século XXI não perderá tempo a julgá-lo, mesmo sabendo o contexto da escrita. É certo que na época a coisa era um caso sério no que toca a eficácia, mas hoje é impossível ser lido, salvo excepções, como algo hilariante. A intuição de Ortigão leva a afirmar, com comicidade, que «nada torna o estômago mais abarrotado, o cérebro mais espesso, a inteligência mais bronca, a actividade mais dormente» que café com leite e pão com manteiga ao pequeno-almoço, sendo que em 2014 continuamos embrutecidos, já que para muitos esta refeição permanece incólume. Assim, procurando ligações com o que se pensa sobre saúde e bem-estar na actualidade, dá-nos um gozo tremendo achar que sabemos mais, mas não deixa de ser um ponto de vista que pode invalidar a superioridade intelectual das gerações posteriores como a nossa: tal é comum no que diz respeito aos laços entre velhos e novos. Felizmente haverá quem faça uma leitura menos tendenciosa, até porque a quantidade de testemunhos estapafúrdios na literatura mundial é incontável.
A prosa de “As Praias de Portugal” insere-se, sem questão, nos ritmos e cadências da Geração de 70, em especial quando o autor assenta em texto aquilo que vê. Já o que está para além dos sentidos de Ortigão, uma ciência destreinada, por assim dizer, é mais caduco. Em jeito de celebrar o fim do Verão, ou o antecipar do próximo, é um bom companheiro de descanso sob forma de jogo das diferenças entre passado e presente. Que comecem as chuvas enquanto a leitura se fica pela praia.
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