“Ela não é a mulher que fui noutros tempos. Os olhos são tão azuis como sempre, mas há mais tristeza neles. O rosto é ligeiramente redondo, e pálido, e mais magro do que era. Continua loura e razoavelmente bonita – mas também debilitada, e definhada; uma mulher de trinta e três anos, há muito vazia de todo e qualquer traço da rapariga que foi.”
É com este auto-retrato ao espelho, desenhado na terceira pessoa como se a imagem própria não fosse mais do que um estranho e ausente holograma, que tem início “As Gémeas do Gelo” (Topseller, 2015), um thriller do jornalista e escritor britânico S. K. Tremayne.
Lydia e Kirstie tinham 6 anos e eram gémeas idênticas. Quando Lydia morre acidentalmente na queda de uma varanda, é como se um buraco negro se abrisse para Sarah Milverton e Angus Moorcroft, que tentam salvar a relação e o que resta da família mudando-se para Eilean Torran, o nome gaélico-escocês dado à Ilha do Trovão. Uma herança da avó de Angus deixou-lhe, nesta ilha, uma casa com um farol, situada num terreno quase inabitável numa terra que se diz estar cheia de fantasmas.
Para Sarah, porém, a estranheza não corresponde somente ao lado natural da ilha, e o pânico e a incerteza quando a filha, a certa altura, lhe diz isto: “Porque continuas a chamar-me Kirstie, mamã? Quem morreu foi a Kirstie. Eu sou a Lydia.” Incapaz de saber ao certo qual das gémeas terá de facto sobrevivido – em pequenas distinguia-as pintando uma das unhas dos pés de cada uma de cores diferentes -, Sarah vai tentando ler os sinais que vão aparecendo: há um brinquedo favorito de Lydia que estava fechado no sotão e que misteriosamente aparece na sala; Kirstie diz “nós” em vez de “eu”; Benny, o cão, comporta-se agora de maneira diferente; na escola a filha deu um salto enorme e repentino na leitura; e, na noite do fatídico acidente – em que vestiam ambas vestidos iguais -, foi Kirstie quem viu a irmã cair.
Com o mau tempo a fazer uma espécie de eco do negrume que começa a tomar conta da família, fantasmas começam a sair do armário e de dentro das personagens, obrigando o leitor a recuar até à noite fatídica em que uma das gémeas morreu.
Ainda que lhe falte alguma da carga relacional dramática – e feita de redemoinhos – de “Em Parte Incerta” ou, por outro lado, a vertigem e o apelo do calafrio de “Lembro-me de ti” – a casa e a ilha podiam ter sido melhor espremidas -, “As Gémeas de Gelo” é um thriller absorvente montado em modo page turner que, com um certo ar gótico, nos mostra que há feridas – e memórias – que dificilmente poderão ser curadas, sobretudo quando se cai nas areias movediças da ocultação da verdade.
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